Conto - Quebre O Silêncio


Conto – Quebre O Silêncio

O dia havia sido cansativo demais para Rebeca. A única coisa que ela mais ansiava naquele momento era sua cama. Entrou no elevador, morava no último andar, e em dias como aquele se lamentava disso. Se morasse logo no primeiro... Passou a mão pelos cabelos loiros, olhou-se no espelho em uma das paredes do elevador. Tinha olheras sob os olhos. Também! O tanto que vinha trabalhando nos últimos dias...

            Finalmente chegara à casa. Passou pelo corredor vazio, parou em frente à porta número 204, colocou a chave na fechadura e abriu. Mal entrou já fechara a porta, indo diretamente à cozinha pegar um copo de àgua, para conseguir finalmente deitar-se na cama. Qual não foi a sua surpresa, ao entrar no quarto e ver um vulto na escuridão. Apertou o interruptor sem pensar nas consequências, e se fosse um ladrão?

 - Quem é você? – ela gritou.

            Os poucos segundos que se seguiram pareceram minutos. A moça parada diante dela virou-se lentamente, com um sorriso no rosto. Os cabelos negros repicados na altura dos ombros, os olhos igualmente negros e amendoados, a boca fina. Vestia uma calça jeans surrada e uma camiseta preta sem mangas. Tinha as roupas de Rebeca nas mãos, estava revistando sua gaveta quando fora descoberta.

- Saia da minha casa! Pode levar o que quiser, só não me machuque! – Rebeca continuou a gritar com uma voz fina e estridente.

- Hey tenha calma. Eu não quero nada. Além disso, não vou te machucar. – o sorriso constante daquela estranha tentou acalmá-la.

- Não acredito em você. – rosnou. – Aliás, como entrou? Eu lembro, a porta estava trancada! E não pode ter sido pela janela, já que moro no décimo segundo andar. – disse incrédula.

            A estranha abriu mais o sorriso, deixando um quê de mistério no ar. Sentou-se despreocupadamente na cama da dona da casa, que protestava indignada. Olhou à sua volta, como se avaliasse o local. Por fim, disse:

- Gostei... Até que é um lugar legal...

- Você está de brincadeira comigo, não é? – ela só podia estar sonhando, não era possível!

- Relaxa garota! Não é como se eu fosse te atacar. – Rebeca olhou-a de soslaio, ainda sem ter muita certeza sobre o que fazer naquela situação.

- Como eu posso saber o que você vai ou não fazer? – perguntou, por fim.

- Não pode. Aí é que está a graça. – sorriu. – Você vai ter que confiar. 

            Rebeca estudou-a da cabeça aos pés, sem conseguir acreditar. Apesar do cansaço, agora estava bem desperta, com a cabeça rodando a mil por hora. Se fosse em qualquer outra situação, já teria gritado e feito um escândalo, mas estranhamente não se sentia ameaçada pela estranha. Quanto estranho dentro de um mesmo pensamento... Mas o que poderia fazer? Era tudo realmente muito estranho. Olhou desconfiada para a garota (Ou seria mulher?) sentada na cama.

- Vai me contar quem é?

- Depende. Quer que eu minta? – após o olhar derrotado da anfitriã, começou a rir.

- O que é tão engraçado? – ela estava na defensiva.

- Nada... Olha, o que posso dizer é pouca coisa. Estou aqui por que era para ser, era para estar. Era para te conhecer. É tudo o que eu sei.

- Mas porquê aqui? Na minha casa? Não sabe da onde veio? Não trabalha? Quantos anos tem?

- Ai meu Deus, quanta pergunta! Assim você vai me elouquecer! – a garota colocou a mão nos ouvidos.

- E isso é só o básico ainda! – ela estava no direito de querer saber tudo aquilo. Afinal, ela era a dona da casa, e não a intrusa.

- Está vendo? Por isso que você está tão esgotada nos últimos dias. É muito preocupada, vive para o trabalho. Não se diverte. Não relaxa.

- Como sabe? – desafiou Rebeca.

            A garota levantou-se da cama, andando vagarosamente até Rebeca, olhando-a diretamente nos olhos castanhos. Ficou perto da outra, talvez até perto demais... Podia sentir seu hálito quente, com cheiro de bala de hortelã.

- Eu posso ver a tristeza dentro dos seus olhos. – ela declarou.

            Rebeca sentiu seu corpo fraquejar, as pernas tremerem, o coração disparar. Como podia? Uma pessoa que entrara em seu apartamento, que nunca a vira antes, saber tanto sobre ela? Conseguir atingir seus medos, receios e sentimentos tão certeiramente daquela maneira? Era demais para sua cabeça, estava esgotada. Seus olhos começaram a se fechar, as pernas perderam as forças e ela começou a cair.

            Acordou com o sol batendo nos seus olhos, mas não ousou abrí-los. A cama era encostada em uma das paredes, e na parede contrária havia uma enorme janela. Sentiu um perfume gostoso, virou-se de lado abraçando o que pensava ser seu travesseiro. Macio, quente, cheiroso... Abriu os olhos imediatamente. A moça continuava ali, segurando-a em seus braços, com um sorriso tranquilo no rosto.

- Dormiu bem? – perguntou com a voz preguiçosa.

- Dormi sim... Estava todo esse tempo acordada?

- Eu estava vendo você dormir. – aquela voz melodiosa combinada com as palavras certas...
           
            Aquela moça parecia ter caído do céu e atendido sua prece! Fora uma das melhores noites que já tivera. E acordar naqueles braços macios e quentinhos, era uma benção! Ela não gostaria de sair dali tão cedo. De repente, sentou-se na cama. Lembrou-se que tinha que trabalhar, era bom demais para ser verdade. Como se lêsse seus pensamentos, a outra falou:

- Não, você não vai trabalhar hoje. Ligue e diga que está doente. – ela tinha um sorriso maroto nos lábios.

            Como resistir aquela tentação maravilhosa? Com um sorriso cúmplice, Rebeca ligou para o trabalho dizendo que estava com uma gripe e um pouco cansada, que não iria trabalhar enquanto não melhorasse. Como sempre fora uma ótima funcionária, trabalhando às vezes até mais do que o devido, seu chefe não se incomodou.

- Hey até agora não sei o seu nome.

- Pode me chamar de Leela. – a moça sorriu, alguns fios de cabelo caindo-lhe por sobre os olhos.

- Nome estranho... Mas gostoso de pronunciar... Leela. – saboreou a palavra na boca, experimentando a sensação da língua ao pronunciá-la.

- Becca. – disse o nome da outra da mesma forma, lentamente, saboreando-a nos lábios rosados.

            A anfitriã sentiu um arrepio pelo corpo. Deu um sorrisinho matreiro e repetiu, sentindo a palavra rolar-lhe pelos lábios, macia “Leela”. A outra apoiou-se por cima da loira, sorrindo-lhe, pronunciando o som que saia seco, rápido, como se agarrasse ao último suspiro rouco “Becca”.  Ficou bem perto dessa vez, roçando seu nariz no nariz pequeno de Rebeca. Sorriu, colando os lábios rapidamente nos da outra e levantando-se logo em seguida.

- Vem Becca, quero sair um pouco daqui de dentro.

            Rebeca trocou de roupa, e acabou se esquecendo de que Leela nem mesmo tinha roupa para trocar. Ela tinha dormido com a mesma da véspera, e sem que notasse, ainda estava com ela para darem seu pequeno passeio. Ela saiu trancando a porta, levando sua preciosidade consigo. Entreram no elevador, e para seu azar, um casal de senhores que moravam à duas portas da dela, também entrou.

            A loira cumprimentou-os, ficando quieta no canto, socialmente. Leela olhou para a pose que a outra tentava sustentar. Deu um sorriso de canto, virou-se e começou a se olhar no espelho, intrigada com uma parte do rosto. Fraziu o nariz de um lado para o outro, sem sucesso. Virou-se para a sua acompanhante, dizendo:

- O que tem no meu rosto? Aqui, perto do nariz, não consigo tirar! – disse com voz de desânimo.

- Deixa eu ver... – ela aproximou-se o máximo que pode, para ver o que havia no rosto da outra.

            Quando percebeu que, na verdade, nada havia, já era tarde demais. Leela sorriu marotamente, colocou sua mão na nuca de Rebeca e a puxou para perto, dando um selinho em seus lábios. No começo, a loira ficou mole, aquele cheiro... Mas então se lembrou do casal ao lado delas. Olhavam-nas com bocas abertas e espantadas, olhos arregalados, como se houvessem visto um monstro. Logo que a porta se abriu, desceram correndo. As duas desceram e Leela se virou para ela:

- Não fique triste. – levantou seu queixo com a mão. – Não se deixe abalar pela ignorância dos outros. Eu não fiz nada demais com você. Só demonstrei o meu carinho, como aquele senhor poderia muito bem fazer com a esposa.

            Rebeca sentiu-se melhor, mas apesar disso nada disse. Saíram do prédio, o dia estava lindo lá fora, ensolarado, com um pouco de vento. Andaram um pouco, enquanto conversavam amenidades. Andando na praça, havia uma criança com seu cachorro labrador. Leela, rindo, correra atrás do cachorro, enquanto a loira dizia:

- Vamos Leela! Não seja criança! – mas tudo o que a outra fez foi rir, e depois vir correndo para cima dela, que não teve alternativa a não ser correr também.

- Ai estou ficando cansada! – declarou a loira, parando para recuperar o fôlego.

- Okay, vamos tomar alguma coisa. Tchau gente! – Leela acenou para as crianças.

            Leela parecia nunca se cansar. Mas Rebeca estava se sentindo bem demais para reparar em tal coisa. Pararam em uma cafeteria e compraram um café para cada uma, em um daqueles copos enormes. Resolveram continuar andando na praça, já que o clima estava bom. Sentaram-se em um dos bancos e tomaram todo o café, enquanto conversavam. E riam. Riam sem parar.

- Devíamos marcar nossa presença por aqui... – disse a morena, procurando algo com os olhos.

- O que quer dizer?

- Vem! – Leela levantou-se, correndo até a árvore mais próxima.

            Rebeca acompanhou-a, rindo, pensando aonde que aquela boba iria levá-la agora. A morena pegou uma pedra pontuda que achara no chão e disse:

- Aqui, nesta árvore. Escreva meu nome.

- Mas não podemos fazer isso com a pobre árvore... – ela começou a reclamar, mas a outra colocou a pedra na mão dela, guiando-a até o tronco da árvore.

- Há milhões de árvores por ai. Essa será especial. – sorriu.

            Aquele sorriso parecia sempre lhe anestesiar. Rebeca sorriu e escreveu “Leela” na casca da árvore. Depois, passou a pedra para a outra, que logo em baixo escreveu “Becca”. Soltou a pedra no chão, olhando-a satisfeita, dizendo:

- Pronto. Agora todo mundo que olhará nesta árvore saberá que é nossa. Só nossa.

- Mas... O que vão pensar quando virem esses dois nomes femininos aqui? – olhou aflita para os lados.

- Que eu amo você. Que você me ama. O que mais há para pensar? – a lógica de Leela era irrefutável.

            Rebeca calou-se, olhando novamente para a árvore. Amor. Nunca o sentira, até... Leela aparecer. Então aquilo seria amor? Sentir-se protegida por alguém, querer estar sempre com aquela pessoa. Rir das piadas mais bobas, voltar a ser criança e cometer tolices. Não se importar com as outras coisas, pois no momento tudo o que importa é aquela pessoa à sua frente. É. Deveria ser aquilo.

            Passaram a tarde naquela praça, como se não houvesse mais nada a se fazer nessa vida. Como se tudo coubesse ali dentro daquele espaço, tão pequeno e ao mesmo tempo tão grande. Com o pôr do sol, as folhas já marrons e laranjas no chão ficaram mais laranjas, amareladas, aliás, toda a praça tinha uma coloração alaranjada, ensolarada.

- Vem, me ajuda a pegar essas folhas. – Leela disse, abaixando-se.

- Para quê?

- Você vai ver. Vamos colocar tudo aqui. – juntou tudo em um certo ponto da praça

            Passaram uns bons minutos amontoando todas as folhas, e naquela árdua tarefa, não perceberam que uma multidão de curiosos ia se juntando ao redor delas. Quando o sol estava mais baixo, Leela olhou para a montanha que tinham conseguido juntar, já era o suficiente. Pegou nas mãos de Rebeca, fazendo com que as folhas que esta segurava caíssem no chão novamente. Olhou dentro dos olhos castanhos, cremosos, dóceis. Felizes. Olhou à sua volta, todos altamente curiosos do por quê daquela agitação toda.

- Becca. Este é o nosso castelo. Becca. Este é o meu reino. Meu mundo. Becca, eu te nomeio a rainha do meu reino. A rainha do meu coração, eternamente. – ela abriu um sorriso que desarmou tudo o que a outra pudesse falar.

            O momento seria doce, perfeito, vivo, se não fosse os comentários que começaram a se seguir após aquele enlace:

- Que nojento! – o cara da esquerda falou, cuspindo no chão.

- Que horror! Deviam proibir esse tipo de coisa em lugar público. – a mulher tapou os ouvidos da menina à sua frente.

- Aberrações! – gritou o senhor com a bengala.

- Vocês não têm mais salvação. – gritou a freira do canto.

            Rebeca tinha os olhos transbordando em lágrimas, o coração apertado, dóido, rasgado, sangrando. Queria fugir, mas sentia-se envergonhada demais para fazê-lo. Mas então, um pequeno corpinho delocou-se do meio da multidão, correndo para o meio delas. A garotinha, de trancinha nos cabelos loiros e olhos azuis, segurou-se com força na barra da blusa de Rebeca, chamando sua atenção.

- Eu posso ser a filhinha de vocês? – aquela vozinha inocente, o sorriso no rosto, fez com que Rebeca não aguentasse mais e começasse a chorar.
           
            Como que alguém tão pequeno, e com tanta inocência, podia ser tão simples, e conseguir entender o que todas aquelas pessoas presentes, tão cultas socialmente, não conseguiam? Leela e Rebeca sorriram, consentindo. Mas antes que pudessem se jogar por cima das folhas amontoadas ao lado delas, a menina foi arrancada de perto delas pelos braços da mãe aterrorizada.

            Do meio da multidão, surgiu um homem, de braços fortes e atitudes machistas. Olhou para a cena, enojado. Arrancou o revólver da cintura, apontando para elas e praguejando:

- Vocês não são merecedoras deste mundo. De Deus. Estão sujas, imundas. Contaminando tudo a sua volta. Vermes. Têm que ser eliminados.

            A criança debatia-se violentamente nos braços da mãe, chorando, tentando sair, mas os braços a seguravam firmemente. Ninguém, ninguém daquela multidão, levantou um dedo, não disse uma única palavra, para que a tragédia fosse impedida. O silêncio consentia. A bala saiu num estrondo, zunindo, como se fosse o único som ali presente.

            Uma ventania começou, fazendo com que as folhas voassem em torno delas, e quando a bala, com estrondo, atingiu o coração de Rebeca, asas se abriram violentamente das costas de Leela. Asas enormes, negras, que protegiam Rebeca. A menina parara de se mexer, maravilhada com as asas que se movimentavam, com o vento, as folhas laranja, e Rebeca...

            Os olhos vivos novamente, o sorriso estampado no rosto, a sensação de paz que sentia dentro do peito. Nada doía, tudo era paz. Somente. Olhou docemente para Leela, que continuava segurando suas mãos. Leela, era seu anjo. Agora podia entender, agora tudo fazia sentindo... Nos últimos segundos entre a vida e a morte, ela compreendeu.

            Compreendeu aquele cansaço que se acumulara em seu corpo, compreendeu a tristeza que levava em seu coração. O medo, a insegurança, a solidão. Relembrou das pílulas que estavam em uma caixinha dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. Iría tomá-las, todas de uma vez, depois de acender à luz, mas...

Leela esteve lá para dar vida e sentido à existência dela. Por isso que se sentira tão confortável, por isso confiara tanto, por isso tudo se encaixara perfeitamente. Leela esteve lá, para fazê-la sorrir. E Leela esteve lá, para aliviar a sua dor. E Leela continuava lá, porque era ali que pertencia. Porque era à ela que pertencia. E Rebeca não teve medo. Pois Leela estaria ali com ela, para sempre. 

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