Conto - A Última Viagem


N/A: Eu estava ouvindo a música "Losing your memory" de Ryan Star e me veio uma inspiração para escrever. Não sei se está bom, mas foi algo que me veio à cabeça, e que provavelmente vem do coração. Talvez meio triste, talvez sem um final definido, mas verdadeiro, que eu finalmente consegui transformar em palavras. Espero que leiam, gostem e deixem comentários. Boa leitura!

Conto – A Última Viagem
  
            Sempre que eu pegava aquele ônibus, enquanto ele saia da cidade e vagarosamente ganhava as estradas, eu ia ouvindo música nos fones de ouvido. Olhava pela janela, observando nada mais do que a estrada, o verde, a grama, as árvores e o céu azul claro, cheio de nuvens. Ouvia músicas que me colocavam para cima, deixavam-me de bom humor, pois era assim que eu me sentia. Minha alma cantava. Eu estava livre. Melhor ainda: eu estava voltando para casa. Irônico, não é? Era apenas uma viagem, mas eu me sentia em casa. No começo, eu mal podia pagar a passagem de ida e de volta, era tão difícil conseguir ir aos eventos, rever meus amigos... Mas com o tempo, aquelas viagens foram se tornando frequentes. Duas, três, quatro vezes ao ano. Depois, seis, sete, oito vezes. Eu ia a cada dois ou três meses, às vezes menos, sempre dando um jeito. Participava de encontros, ia a shows, encontrava meus amigos. Eu via mais os amigos de São Paulo do que os da minha própria cidade. Já não era mais novidade descobrir um hotel onde passar a noite, não havia mais mistérios nos metrôs e ônibus das rotas mais conhecidas. Era natural que depois de tantas idas e vindas, eu finalmente estava chegando para nunca mais partir.

            Quatro horas de viagem. Parece bastante tempo. Em sua maior parte, eu lia, sempre carregando um livro em uma bolsa ou mochila. Isso me distraia bastante. Dormia durante meia hora ou quarenta minutos. Mas sempre havia um tempo para pensar, e principalmente, fantasiar. Em todas essas viagens eu sempre me peguei pensando... Como seria ter você me esperando na rodoviária? Com uma plaquinha escrita o meu nome, ansiosamente tentando divisar o meu ônibus dos outros. E então eu apelava pelo acaso. E se você estivesse na fila da Starbucks quando eu fosse comprar o meu café? E se andando pela Livraria Cultura eu esbarrasse em alguém, e ao pedir desculpas, desse de cara com seus olhos cor de chocolate? Mas então, as fantasias se transformaram em paranoias. Andando pelas estações eu quase congelei ao ver uma garota de cabelos cacheados e castanhos, magra, de costas para mim. Uma ansiedade gigantesca me corroendo por dentro, até que ao se virar, suspirei em uma mistura de alívio e decepção: não era você. Isso aconteceu umas cinco vezes em um curto período de tempo. Estaria eu enlouquecendo? Não importava o quanto eu estivesse distraída, se acaso alguém minimamente parecida com você aparecesse em meu campo de visão, minha atenção se voltava instantaneamente para essa pessoa.

            Vinte minutos finais. Já estava escurecendo. Olhando pela janela do ônibus, sentia meu estômago lotado de borboletas se mexendo, para ser clichê. Se for para ser verdade, diria que estava sendo corroído pela ansiedade e nervosismo. Começar a ver os prédios daquela cidade deixaram meus olhos brilhando, refletidos nas luzes amarelas dos postes. Havia alguns pontos que eu gravara que o ônibus sempre passava. Algumas curvas, prédios iguais e coloridos, um centro de zoonoses, um departamento de inteligência da polícia, uma ponte que tinha um desenho de uma carpa gigante e colorida em sua estrutura... Eu sempre adorara aquela carpa! Após vê-la, sabia que logo eu chegaria à rodoviária, caso não houvesse engarrafamento. Eu estava em casa! Quando finalmente o veículo parou e todos se arrumaram para descer, eu peguei minha mochila e me encaminhei para o corredor. Desci os degraus e pisei, pela primeira vez, em meu novo lar. Olhei ao meu redor, com a imagem da espera e da plaquinha, mas não havia ninguém. “Eu cheguei.” Eu sussurrei. “Eu finalmente cheguei!” Senti as lágrimas descerem pelo meu rosto. Uma frase martelava em minha mente: “Tarde demais”.

            Com a mochila nas costas, resolvi tomar o meu rumo. Eu havia conseguido um quarto alugado para ficar por um tempo, era barato, simples, mas dava para ficar. O emprego que eu finalmente conseguira ainda só ia começar na próxima semana. Eu não avisara ninguém do dia exato em que eu ia chegar. Ligaria depois e marcaria de encontrar algumas amigas. Recarreguei o meu bilhete e fui em direção a Jabaquara. Precisava pegar a linha vermelha, e então seriam poucas estações da onde eu precisava ir. De pé, encostada na parede do vagão, com o fone de ouvido, meus olhos vagavam por aquela multidão. Perdiam-se em lembranças e desejos do que poderia ter sido, do que eu sempre desejei. Já devia fazer uns dez anos desde que tudo aconteceu... Só então eu conseguira estar para ficar naquela cidade. Finalmente a distância que tanto nos separou não existia mais. Mas agora, o abismo era outro. Tão absorvida eu estava, que perdi a estação em que eu ia descer. Droga! Desci duas depois, com o intuito de pegar o sentido contrário, quando algo me chamou a atenção no meio da estação.

            Uma garota debruçada no beiral, perto da escada rolante, com a espessa cabeleira rosa encaracolada, de costas, gesticulando e conversando com uma outra ao seu lado. Não há como descrever o que senti. Meu coração parou, as mãos gelaram, senti um aperto no peito. Não era fantasia, não havia espera, nem dúvidas, apenas uma certeza: era você. Virou-se, rindo, aquela risada que eu sempre quis ouvir e sempre admirei. Conversava animada com a outra garota. Usava calça jeans justa, uma camisete florida por cima, sem mangas, botas sem salto e uma bolsa a tira colo. Eu não consegui andar, nem falar, tão pouco respirar. Estava dividida entre querer ficar ali e te observar para sempre, e ao mesmo tempo sair correndo e fugir do seu fantasma de carne e osso. Após alguns segundos, finalmente entendi o porquê esperava ali. Na escada rolante vinha ela. Cabelos compridos, negros, um sorriso simpático. Mal alcançou o patamar correu em sua direção e lhe abraçou, colando os lábios nos teus. Não pude evitar as lágrimas de brotarem em meus olhos, a dor no peito dolorido, a mágoa e a tristeza.

            Eu invejava aquela mulher. Invejava que ela havia conseguido tudo o que eu queria: você. O sentimento de abandono crescia dentro de mim. Senti-me tão pequena, tão insignificante, tão invisível... Até que seus olhos, não sei se por instinto, seguiram-se em minha direção. Eu queria me esconder, sumir em um buraco. Mas não houve tempo. Sua risada secou, seus olhos se arregalaram e eu pude perceber a surpresa com que me olhou, apenas por alguns segundos. Depois sorriu, desviou o olhar, abraçou a morena pela cintura e falou algo em seu ouvido, beijando-a novamente. Sorri amargamente. Segurou na mão dela e as três foram andando para o lado oposto. Com aquele ar gélido que eu costumava imaginar, você andava, como se eu não existisse. E me doeu, claro que doeu. Todos me diziam, todos me avisavam, todos tentaram me proteger, e eu sempre insistira em querer lhe ver. Talvez fosse finalmente a chance que eu tanto pedira aos céus. Como se esfregassem em minha cara: “Está feliz, otária? Era isso o que queria ver? Como ela te despreza? Como não se importa com você? Como ela está feliz com outra?” Talvez fosse. Ou talvez aquela ponta de esperança jamais fosse me deixar, até agora.

            Sem estruturas para me manter de pé, sentei-me no chão, encostando-me à parede, chorando copiosamente. Já não me importavam o que os outros iam pensar. Que ótima recepção... Tudo o que eu sempre quisera... E todo o sofrimento do qual sempre me protegeram. Após alguns minutos, passos apressados, e você voltou. Parou em minha frente, e ao lhe olhar, voltei a convulsionar em choro. Suspirou, tristemente. Sentou-se no chão de frente para mim, com ambas as pernas para o mesmo lado, e me disse séria:

— Eu só tenho alguns minutos. – sua voz... Querida voz...

— Eu estou horrível... Me desculpe, eu... – funguei, sem saber o que dizer, o que pensar, ou como agir. Passava a manga da blusa de frio no rosto, tentando conter o choro.

— Eu que peço desculpas. – ela sorriu minimamente. Sempre a achara tão linda...

— Por que você voltou? Não compreendo... Você me odeia...

— Eu não te odeio... – Ela retrucou.

— Você me esqueceu... Você... Me abandonou. – mais lágrimas descendo. Feridas de há muito abertas estavam sangrando novamente.

— Sim... Me desculpe. – ela colocou sua mão em meu joelho.

— Mais de uma vez. – eu olhei-a fundo nos olhos, e então percebi aqueles olhos que eu tanto amara verterem em lágrimas. Sim, ela sabia do que eu estava falando. Não fazia ideia de como, mas ela sabia.

— Há muito tempo... – ela confirmou com a cabeça.

— Eu... Eu estou louca? Você sabe... – suspirei um pouco mais calma.

— Não, menina, não está. Infelizmente você enxerga mais do que deveria. Você sente mais do que deveria, e insiste mais do que deveria.

— Me desculpe. – balbuciei.

— Eu preciso ir, ou ela não vai acreditar na desculpa que eu der. – ela se preparou para se levantar, mas eu me agarrei ao seu braço.

— Para sempre? – olhei-a dentro dos olhos, através dos óculos de armação grande e redonda que ela usava. Ela pareceu hesitar, não sabia exatamente o que responder. Levantou-se e me estendeu o braço. Segurei em sua mão e me levantei do chão, secando o resto das lágrimas.

— Não, sabe que não. Muita coisa pode mudar. Mas não espere. O que tiver que acontecer...

— Vai acontecer. – eu completei a frase. — Eu sei, eu sei...


            De repente seu corpo estava contra o meu, em um abraço caloroso, um abraço que eu sempre sonhei receber. Apesar de ter durado segundos, pareceu que se passaram horas. Ela sorriu e dizendo adeus, voltou a caminhar depressa de onde viera. Tomei o caminho oposto, quase me esquecendo de para onde eu tinha que ir. Precisava tomar alguma coisa. Parei naquelas lojinhas dentro da estação e comprei uma água. Eu já não entendia mais nada. De acordo com os sinais, eu perdera o ponto de propósito? E o que aquilo queria dizer? Eu a encontrara em meu primeiro dia em São Paulo como moradora. Fazia algum sentido? Suas palavras, tão cheias de sabedoria... Claro que ela não estava sozinha. Como ela descobrira? Como ela sabia de nossas vidas passadas? Suspirei, sentindo-me extremamente cansada, mas um pouco feliz e esperançosa. Aquela havia sido minha última viagem a São Paulo, pois ali eu iria ficar, mas aquele havia sido o primeiro encontro de muitos que eu ainda poderia ter. 

Um comentário

  1. Adoro esses contos rotineiros, você sabe disso...e esse, em especial, eu apreciei ainda mais! Lembrei-me de suas viagens para SP, imaginei o desespero da personagem ao encontrar a moça que ela procurava com outra, mas mais do que isso imaginei sua felicidade (misturada a desespero, claro rsrs) quando a menina retornou. Enfim, adorei...e achei uma ótima escolha da música! *_*

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