Conto - Romanticídeo
Ando sem rumo
por essas ruas escuras, perdi minha consciência, já não sei quem sou e nem o
que faço nesse momento. Apenas continuo caminhando em busca... Do quê? Não faço
a menor idéia. Pedaços de memória aparecem e desaparecem simultaneamente em
minha mente. Faço força para me lembrar de qualquer coisa, mas não consigo.
Coloco as mãos na parede, tentando ver onde estou e percebo que elas estão
sujas de sangue. Tateio-me na esperança de ter algum ferimento, buraco, arranhado
ou qualquer outro vestígio de machucado em minha pele. Nada. E mesmo assim
continuo suja de sangue. Tento lembrar o que aconteceu desesperada. Se o sangue
não é meu, de alguém tem que ser...
“-
Saia daqui! Vai embora! Eu já te disse que eu não te amo! E que não quero
ninguém ao meu lado!”
Essas palavras
vieram como um raio iluminando meu caminho. Comecei a tremer de pavor
imaginando o que poderia ter acontecido, ou pior, o que eu poderia ter feito.
Sentei no chão da onde eu estava, não ainda não sabia exatamente onde. Fiquei
olhando para o escuro, tentando imaginar ou pelo menos lembrar o que havia
acontecido.
“-
Não Gabi, eu já disse que não vou embora! Por favor, abra essa porta! O que
você está fazendo aí dentro?”
Agora eu
começava a lembrar. Eu batia insistentemente na porta do banheiro, na esperança
de Gabriela sair de lá, mas ela era teimosa.
“-
Que saco Marcela, eu já mandei ir embora! Você não entende! E não adianta vir
com essa sua filosofia barata otimista que eu não vou acreditar!”
Sim eu entendia,
entendia que a mulher que eu amava tinha perdido a esperança, não acreditava
mais em si mesma, tinha chegado ao fundo do poço. Entendia que ela não queria
ajuda, porque ninguém sabia o que ela passava. Só que comigo era diferente,
sempre fora.
“-
Eu entendo! Entendo que você não agüenta mais, está sem forças. Cansou de
tentar e só perder o chão cada vez mais. Entendo que tudo o que você queria era
que a vida fosse mais fácil. Só que eu não vou deixar você fazer nada, ouviu!?
Não posso deixar que você se machuque.
Ela não disse
mais nada, eu só ouvia o som de suas lágrimas, de seu choro convulsivo, seus
soluços. Tinha medo do que ela poderia fazer, tinha medo. Meu amor por ela era
incondicional. Mesmo eu sabendo que ela não faria muita coisa por mim, eu faria
por ela. Qualquer coisa. Tudo.
“-
Gabi? Gabi? Fala comigo! Me responde!”
Mas eu não
obtive resposta. Comecei a me desesperar e sem pensar direito, chutava e batia
na porta, tentando abri-la. Até que com um chute mais forte a porta se abriu.
Gabriela estava sentada no piso frio do banheiro, segurando uma gilete, fazendo
cortes em seus braços. Olhou-me com lágrimas inundando seus olhos.
“-
Mah, eu não posso mais continuar... Não posso, quero acabar com isso, com essa
tortura...”
Eu ajoelhei-me
apressada, tirando a gilete de sua mão e peguei uma toalha, pressionando contra
os ferimentos que ela tinha feito.
“-
Meu amor, o que você fez? Pelo amor de Deus! Não faça isso, nunca mais!”
Ela abraçou-me
chorando, desabando sobre os meus braços. Eu chorava junto com ela, estava com
meus braços e minhas mãos cheias de sangue. De repente ela começou a falar,
desabafando:
“-
Sabe, chega uma hora que a gente não agüenta mais, e eu não agüentei. Eu nunca
tinha me entregado á ninguém, até o Bruno aparecer. Entreguei em seus braços,
me abri de todas as forças, deixei minha alma á mostra, e o que acontece? Ele
brinca comigo, me faz sofrer. Me largou por causa de uma loira mais alta e mais
bonita que eu. Sou uma sonhadora tola, queria ser modelo, atriz, cantora... Mas
uma garota como eu nunca será uma estrela.
Eu a abracei
mais forte ainda, não podia agüentar a pessoa que eu amava dizendo todas
aquelas palavras, sofrendo daquele jeito. Quando a gente ama, faz tudo pelo
outro. Sim ainda tinha amor próprio, mas
eu amava aquela menina e não ia deixar que ela se afundasse mais. Se eu tinha o
poder de animar as pessoas, fazê-las mais felizes, então eu ia usá-lo naquele
momento.
“-
Minha menina você é linda! A mais linda de todas! Nunca, jamais pense o
contrário! Ele é um burro e idiota de trocar uma garota tão linda e especial,
inteligente como você por um projeto de Barbie! O amor nos faz sofrer sim, mas
temos que nos erguer e seguir em frente. Não vale a pena sofrer tanto por
alguém que só te faz mal.
Por um momento
seus olhos se encontraram nos meus e ela suspirou. Depois disse com a voz
pesada:
“-
Você sofre por minha causa. E eu sei que só te faço mal.”
Dei um sorriso
triste para ela e respondi:
“-
Mas eu não tento tirar minha vida por sua causa. Eu quero viver, viver para te
ver feliz, mesmo que não comigo. Você me faz sofrer, mas eu sigo em frente.
Além do mais, quando vejo o seu sorriso, eu sorrio junto.”
Ela me abraçou
com força, chorando em meu ombro. Levantei a ajudando a se levantar e levei-a
para o hospital. Os enfermeiros começaram a cuidar de seus cortes e ela olhava
para mim tristemente. De repente um cara chegou desesperado e ficou ao lado
dela, enchendo-a de beijos e de promessas. E o pior? Ela abraçou-o de volta
dizendo que o aceitava. Que ele era o amor da vida dela. Que sem ele, não era
nada. Que só ele cuidava dela. Só ele a conhecia. Aquelas palavras foram demais
para mim, sai correndo do hospital, cega de raiva e de ciúmes.
Comecei andar
sem saber para onde, fiquei andando horas e horas até não ter mais noção de
nada... E voltei para essa rua onde estou sentada agora. O que você quer que eu
faça? Que volte lá e diga que a amo? Que eu volte para que ela possa enfim ter
uma chance de se explicar? Ou prefere que eu acabe com a minha vida agora
mesmo? Porque o pior de ser otimista é que quando seu mundo desaba e você fica
sem chão, acaba caindo no abismo do pessimismo. Ou preferem que eu esqueça e
acabe essa história sem um fim decente? Indo embora atrás de um novo começo?
- Marcela pelo amor de Deus, me
responde! – eu olhei para o lado, percebi que Gabriela estava parada ao meu
lado, segurando meu braço e me chacoalhando. Será que eu havia dormido? Ou
desmaiado? Não sei, acho que acabei divagando...
- O que? O que aconteceu? – eu perguntei
ainda sem saber o que estava acontecendo.
- Eu estava indo embora com o Bruno, e
quando passei nessa rua eu vi você caída aqui no chão. Pedi para ele parar e
desci do carro. – ela falava apressada.
Eu olhei para os
seus braços e havia curativos em seus cortes. Então, lembrei-me de tudo o que
havia ocorrido.
- Você está bem? – eu estava preocupada
com ela.
- Sim. – ela sorriu baixando os olhos.
Depois os levantou e me encarou:
- Muito obrigada. Se não fosse você,
poderia ter sido muito pior. Os cortes até que não foram fundos.
- Ah, que bom! – suspirei aliviada.
Ficamos por um
momento nos olhando, sem saber o que dizer ou o que fazer. Até que Bruno
apareceu ao lado dela, dizendo:
- Você está bem? – dirigia-se a mim.
Limitei-me a balançar a cabeça afirmativamente.
- Amor, não podemos deixá-la aqui. Além
do que, ela me ajudou quando eu mais precisei. Tenho que ajudá-la também. Nos
leva para casa?
- Tudo bem... Vamos. – ele não parecia
muito feliz, mas o fez.
Levantei e ela
me ajudou a andar, entramos no carro. Ela ficou na frente, ao lado dele.
Naquele momento, por mais que eu quisesse matá-lo, ou recusar a carona, não
poderia. Gabriela era uma peça importante em minha vida, eu não poderia viver
sem ela, não agüentaria, não suportaria. Tentei me livrar desse peso, mas vi
que não podia. E o Bruno? Nem sei se ele realmente tinha tanta culpa assim...
Chegamos a casa
dela. Gabriela me ajudou a entrar, mas o Bruno preferiu ir para a casa dele,
após ela dizer que não precisaria de ajuda.
- Vem, você precisa de um banho. – ela
disse.
Pegou uma toalha
limpa e eu entrei no banheiro. Deixei que a água quente do chuveiro limpasse o
sangue do meu corpo e a mágoa da minha alma. Eu chorei, e chorei sem parar.
Estava naquela casa, ao lado da mulher que eu sempre sonhei em estar, mas eram
outras circunstâncias.
Acabado o banho,
me enxuguei e depois me enrolei na toalha branca e felpuda, sai do banheiro e
fui até a sala. Gabriela me esperava com uma xícara de chocolate quente.
- Achei que ia precisar. – ela disse sorrindo.
Sentei-me ao seu lado e peguei a xícara.
- Eu não entendo... – disse confusa. –
Por que estamos aqui? Aliás, por que eu estou aqui, enquanto o Bruno foi
embora? Se eu não significo nada para você?
Ela suspirou
fundo, me encarou, respondendo:
- Você sabe que não é bem assim. Quer
ouvir uma história? – perguntou de repente.
- Claro. – respondi ainda confusa.
Continuei tomando o chocolate quente. Ela suspirou, pensou por uns segundos, e
começou a contar:
- Era uma vez uma princesa. Ela era
linda e perfeita, morava em um grande reino, sonhava com seu príncipe encantado
em um cavalo branco. Tinha tudo o que queria, e seus pais a adoravam. Um dia,
apareceu uma moça do campo, nos arredores do reino, pedindo comida a ela. Essa
princesa, muito gentil, saiu de seu castelo levando comidas e roupas para a
moça. No instante em que seus olhos se encontraram, elas souberam o que era o
amor. Um amor forte, verdadeiro, e o primeiro de ambas. A moça levou a princesa
para passear, e elas passaram o dia juntas, andando pelos campos, cantando e
vendo as estrelas à noite. A princesa nunca tinha tido um dia tão feliz quanto
aquele. Mas, a vida dela não era aquela. De madrugada, apareceu toda a
cavalaria do rei, atrás dela. Seus pais estavam preocupados. Ela ficou assustada,
enfim caiu em si, pensou no que estava fazendo. Se dissesse a verdade, perderia
o amor de seus pais, seus sonhos, sua vida toda. Seria um ninguém vivendo de
esmolas nos campos em volta do castelo. Mas se mentisse, estaria a salvo, de
tudo e de todos. Por mais dolorido que fosse, ela disse que a moça a havia
salvo de um perigo qualquer, somente isso. Despediu-se dela, e voltou para o
castelo. No dia seguinte, apareceu um príncipe lindo a sua procura. Ela aceitou
se casar com ele, mesmo sabendo que seu coração já pertencia à alguém. Ela
viveu razoavelmente feliz por toda a vida, mas sem jamais se esquecer daquela
moça do campo.
Quando ela
acabou de contar, eu estava com os olhos cheios de lágrimas, e ela também.
Gabriela me abraçou forte.
- Me desculpa. – ela sussurrou.
- Tudo bem. Minha principessa. –
respondi, com um sorriso tímido nos lábios.
- Você promete que seguirá com a sua
vida? – ela disse com a voz estrangulada na garganta.
- Prometo. Só não prometo que te
esquecerei.
- Nem eu quero isso. Isso... – disse
colocando minha mão sobre seu peito, na altura do coração. – Sempre baterá
somente por você.
Aninhei-me a
ela, e ficamos ali, um bom tempo. Eu sabia que era a última vez que estaria com
ela, que a veria. Era um romanticídeo, eu estava me matando por ela. Não no
sentido literal, mas estava. Tentaria ser feliz, mas sabia que seria para
sempre ela. Eu queria que fosse somente ela. Não queria deixar que alguém
tomasse seu lugar. E isso não é somente uma escolha, pois eu sabia que sempre a
amaria. Não importava o que os outros dissessem, pois somente ela importava
para mim.
De manhãzinha,
sai de sua casa sem que ela tivesse acordado. Andei sem rumo durante horas, já
sabia o que faria. Parei por sobre a ponte que havia na cidade, e com um
sorriso no rosto, me joguei. A dor de não tê-la era insuportável. Ela estaria
feliz, achando que eu estava bem, então ela não sofreria. E agora, eu também
não sofreria, nunca mais. Agora, ela estava livre para amar. Livre, totalmente
livre. De mim. Romanticideo, até que a morte nos separe.
FIM
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