O
dia estava frio, mas eu até que gostava dessa brisa fresca batendo no rosto e
esvoaçando meus cabelos. Eu escutei uma gaivota piar por perto, voando pelo céu
cinza. O barulho do mar agitado me fazia bem. Olhei para a paisagem a minha
frente, a única coisa que me acalma, o mar batendo nas pedras, o barulho, o
vento... Interessante esse contraste de calmaria de uma praia deserta e das
águas agitadas indo de encontro às pedras. Eu estive sentada na areia por muito
tempo, apenas pensando, sentindo, relembrando.
Levantei-me, e comecei a andar na
beira do mar, sentindo a areia fria e úmida em meus pés. Eu gostava assim, dos
dias úmidos e frescos. Sempre gostei do calor, mas não quando é muito quente;
sempre gostei das chuvas, mas tive medo das tempestades. Você saberia disso, se
tivesse ficado por aqui. Não cabe a mim lhe julgar, não é? Acho que eu deveria
olhar primeiro para os meus erros, certo?
Voltei a sentar-me na areia, e senti
que alguém se aproximava. Não precisei virar para saber quem era. Ela me
estendeu uma caneca de café bem quentinho, saindo fumaça. Agradeci mentalmente,
sentindo o cheiro bom do líquido negro. Ela sentou-se do meu lado, e sem nada
dizer, me abraçou. Senti seu cheiro, seu perfume doce, e sorri. Ela era mais
nova do que eu alguns anos, e eu sempre lhe disse que não devia ficar comigo,
mas ela insistira. E agora eu agradecia pela sua presença.
— Obrigada –
eu fui a primeira a falar.
— Não há de
que – soltou-me, ainda sem me olhar. – Posso ficar aqui?
— Claro que
pode – forcei um sorriso, dando um beijo em sua bochecha rosada.
— Assim é
melhor! – abraçou-me novamente. – Está tudo bem?
— Sim, é só um
daqueles dias... – suspirei.
— Entendo...
Será que ela entendia mesmo? Eu tinha
medo de estar colocando muito peso sobre os ombros de Camila. Uma moça de
cabelos loiros e compridos, nariz pequeno e um sorriso encantador. Era uma moça
tão linda! E muito simpática. Ela tinha apenas vinte anos, e eu estava quase na
casa dos trinta e cinco. Ela merecia viver a vida dela. Deveria estar agora
beijando milhares de garotas em uma festa, indo viajar com os amigos, fazendo
faculdade, sei lá, aproveitando a vida. Qualquer outra coisa, menos estar presa
comigo nessa praia deserta no norte de lugar nenhum.
Mas ela estava ali, não estava?
Lágrimas começaram a descer pelos meus olhos verdes, e eu suspirei. O que
fazer? Era um daqueles dias, em que eu não sobreviveria. Ela sabia, ela me
conhecia... Sabia que em dias como aquele, a única coisa que ela poderia fazer
era me dar apoio, suporte. Porque em dias como aquele, eu lembrava, eu chorava,
eu sentia falta. A tristeza não ia embora até o dia amanhecer novamente.
— Quer
conversar sobre isso? – ela quebrou o silêncio novamente.
— Não sei...
Você já está cansada de ouvir essa história... – comentei.
— Verdade, mas
eu gosto de ouvir. Conta pra mim – ela sorriu, entrelaçando seu braço quente no
meu gelado.
— Tudo bem...
– e comecei a história que eu sabia de cor e salteado. Sabia tanto que tinha
medo de ela estar se desfazendo, desmanchando, desbotando.
Contei-lhe sobre as noites frias de
dezembro e sobre as estelas brilhantes no céu. Contei-lhe sobre os sussurros
que cortavam o silêncio, e sobre os gritos de prazer que invadiram a minha
memória antes que eu pudesse pará-los. Contei-lhe sobre músicas nos rádios que
eu ouvia sem parar, sobre as saídas às escondidas e puladas de janela e as
encrencas que eu me metia por isso. Contei-lhe sobre uma menina, um coração, um
amor e uma esperança um dia perdidos nos caminhos da vida.
Seus olhos se enchiam d’água, e um
brilho permanecia intacto em seus olhos azuis. Ela ainda acreditava em amor
verdadeiro. E eu sorria, sabendo que somente os tolos acreditam nisso. Eu era
tola, sempre seria uma tola, sempre fui uma tola. Eu acreditei. Para ela,
aquele era um conto de fadas que nunca teve um fim, mas para mim, aquela
história era uma parte da minha vida que nunca se resolvera, e talvez nunca se
resolvesse. Olhei novamente para o horizonte, a água gelada, o vento frio, o
céu cinza.
— Você ainda a
ama, não é? – sua voz doce me tirou de meus devaneios. Olhei-a surpresa. – Não
finja que não sabe do que estou falando. Eu não sou boba.
— Sim –
respondi apenas, agora encarando seus olhos.
— E por que
não foi atrás dela? Depois de tantos anos...
— Porque ela
nunca mais me quis. Camila, a vida nem sempre é como queremos que fosse. Eu
esperei, eu tentei, eu machuquei... E paguei o preço por tudo isso.
Ficamos ambas caladas por alguns
minutos. Ela assistia ao mar movendo-se de um lado para o outro, as pedras se
desgastando lentamente. A gaivota que voava por perto deu outro grito,
atravessando o ar. De repente, senti-me só. Ir para aquele lugar fora algo que
eu sempre quisera: uma praia deserta, tranquila, paradisíaca e perfeita. E por
que eu hesitava agora? Porque quem eu queria, nunca estaria ali comigo.
— Eu nunca
devia ter lhe contado todas essas coisas.
— E por que
não? – olhou-me intrigada.
— Você está
comigo agora, sinto como se não fosse certo... Isso é passado, e eu devia
enterrá-lo comigo.
— Você nunca
vai conseguir enterrá-lo – ela voltou os olhos para o mar, e havia tristeza em
sua voz quando continuou. – Eu sei que seu coração já está tomado.
— Como assim?
— Ele já bate
por alguém, e sempre será esse alguém. E esse alguém, não sou eu.
— Eu queria
poder dizer que é mentira...
— Mas não
pode.
— Não, não
posso – assenti.
— Tudo bem,
sério. Eu só quero lhe ver feliz, sabe disso.
— Sei.
Abracei-a novamente. E comecei a
chorar. E chorei, chorei, e chorei por um longo tempo, como uma criança
desolada. Era um aperto no peito, uma tristeza sem fim; a mágoa, a incerteza, a
dúvida, e a certeza, tudo misturado, entrando em conflito. Eu queria poder
mudar o passado, as escolhas que fiz, mas eu sabia que nunca poderia mudar o
fato de que meu coração sempre seria dela. Todos diziam que ela não era a
certa, e que eu estava vivendo no passado. Sim, eu estava, mas eu sentia que
era ela, e seria sempre ela. Mas a vida não é como nós queremos, é?
— Vou entrar,
tomar um banho, e começar a ver o que teremos de janta. Não quero comer sushi
de novo – ela fez uma careta que me fez rir.
— Tudo bem,
minha linda. Sem sushi pra senhorita hoje!
Ela me beijou apaixonadamente.
Então, ela se levantou, bateu a areia do corpo, virou de costas e foi andando
de volta para o chalé. Fiquei sozinha com meus pensamentos novamente. O frio
foi aumentando, e me senti mais sozinha do que nunca. Eu nunca imaginara chegar
aos trinta daquela forma. Aliás, sempre pensei que no futuro tudo seria
diferente, que as coisas dariam certo, o rio seguiria seu curso. Vai ver que
seguira mesmo, e não era para ser. Vai ver que aquele era o meu destino, um
amor de juventude e um vazio pela vida inteira.
Levantei-me, despedindo do mar por
aquele dia, quando avistei, ao longe, uma silhueta. Apertei os olhos. Quem
seria, naquele fim de mundo? A pessoa começou a se aproximar, e logo vi a
figura magra, morena; carregava um par de saltos finos nas mãos, o vestido leve
e branco florido esvoaçando com o vento. A outra mão tentava segurar o chapéu
que queria voar. E então eu a reconheci. Era ela! Era ela! Comecei a correr,
sentindo a areia sob os pés, sentindo a liberdade nos braços, até que meu corpo
se chocasse com o dela, em um eterno abraço apertado. Ela chorava, soluçava. E
eu sorria.
— Não chora,
meu amor, eu estou aqui por você.
— Eu estou tão
sozinha, está tudo caindo... Eu não sei mais o que fazer – ela sussurrou em
meus ouvidos.
— Agora você
está aqui comigo, onde sempre foi o seu lugar.
Beijei-lhe os lábios cheios, com
todo o amor que eu possuía, com a saudade batendo no peito, as lágrimas de
felicidade molhando meu rosto. Nada mais importava naquele momento. Nem mesmo a
escuridão do dia que se aproximava ou o cheiro da chuva que reinava. Tudo o que
importava era que ela estava de volta para mim, agora de uma vez por todas.
— Eu...
Precisamos conversar – ela fungou, com os olhos cheios de lágrimas,
afastando-se um pouco de mim e me olhando nos olhos.
— O que foi? –
perguntei apreensiva.
Dei-lhe a mão, chamando-a para
caminhar comigo pela areia fina, seguindo a linha do mar, observando o céu que
se tornava cada vez mais cinza. Ela ficou calada por um tempo, enquanto eu
respeitava seu silêncio. Aproveitávamos o momento, uma ao lado da outra, como
nunca pudemos fazer. Em dado momento ela parou, sentando-se na areia, de pernas
cruzadas. Fiz o mesmo, sentando-me ao seu lado. Coloquei a mão em sua perna,
sorrindo para ela, mas ela não sorria.
— Eu não posso
ficar. – ela tentava não me olhar nos olhos.
— O que? Como?
Mas, você acabou de chegar... – eu estava realmente confusa.
— Eu... Como
lhe explicar? Eu lhe amo tanto... Mas quando estou perto de você, sinto que me
sufoca... – ela deu um sorriso triste, suspirando.
— Eu te
sufoco? Prometo... Prometo lhe dar espaço, mas, por favor, fique... – mordi os
lábios, entristecida. Segurei forte em sua mão.
— Não é...
Você. Mas é. Não sei explicar... Eu lhe amo tanto... – seus olhos procuraram os
meus. — Mas algo me impede de viver ao seu lado. Eu estou sozinha, com medo,
minha vida ficou arruinada... Por isso eu preciso ir embora, recomeçar.
— Eu vou com
você – respondi prontamente.
— Não pode
deixar suas coisas aqui... Sua empresa... Não somos mais adolescentes... – ela
deu um sorriso tímido.
— Por isso
mesmo – insisti. — Agora podemos tomar nossas próprias decisões, e ir aonde bem
entendermos, sem ter que dar satisfação a ninguém!
— Não é bem
assim, sabe disso... – seus olhos fitaram o céu, estava mais escuro, com nuvens
brancas se acumulando sobre nós. O mar estava mais agitado, batendo com mais
velocidade contra as rochas. Mas eu estava alheia àquilo tudo. — Eu vou ficar
aqui essa noite, com você, mas amanhã partirei.
— E você
volta? – ousei perguntar, sem fitá-la. Ela suspirou em resposta.
— Talvez não,
mas quem sabe um dia... – ela suspirou, com um sorriso no rosto.
— Qual a
graça? – joguei a pergunta, mal-humorada.
— Além do seu
mau humor? – ela riu gostosamente, e depois voltou com aquele ar sapeca. — O
destino... Sabe, vou lhe confessar algo que nunca disse... De todos os meus
relacionamentos, você foi o mais curto, mas o mais intenso. E de todos eles, é
o que eu daria tudo para reviver de novo, e de novo, e de novo. Pode não ser
eterno, mas é o certo. Entende o que quero dizer? – ela procurou meus olhos.
— Entendo – eu
a encarei tristemente. — Sinto o mesmo... Eu só... Queria poder viver assim pra
sempre...
— Pra sempre é
relativo... Faça que esse momento dure pra sempre dentro do seu tempo – ela se
aproximou de mim. — Estou com frio... Está ventando... Devíamos entrar – ela se
levantou, estendendo a mão pra mim.
— Por que você
voltou? – perguntei de supetão.
— Porque
apesar de tudo, eu precisava lhe ver uma vez mais – ela sorriu, virou-se e deu
alguns passos. Começou a chuviscar, ela virou-se para mim: — Vem! Está
chovendo! – e voltou-se novamente, agora correndo até a casa, com os braços
levantados, tentando se proteger dos pingos grandes que caíam.
A chuva não me incomodava não
naquele momento pelo menos. Eu estava demasiada dentro dos meus próprios
pensamentos para isso. Eu sentia a chuva escorrendo pelo meu corpo, encharcando-me,
enquanto a raiva ia tomando conta de mim. Tudo o que eu guardara durante tantos
anos estava a ponto de explodir dentro do meu peito. Por que raios ela tinha
voltado? Deveria ter ficado onde estava! O destino... É engraçado...? Só se for
uma piada de mau gosto! Levantei-me, as rajadas de vento fortes, enquanto a
chuva ficava densa, e os raios cortavam o céu. A tempestade estava feia, mas eu
não me importava. Aliás, aquilo aliviava meu peito.
— O que você
quer? – eu gritei com toda a força dos meus pulmões, virando-me de um lado pro
outro, a raiva saindo pelos meus lábios trêmulos. — O que eu sou pra você, um
brinquedo? Não cansou de me machucar? Hein!? – chutei o ar.
Ouvi o estrondo de um trovão.
— Por que a
trouxe de volta? Eu a amo! Por que não posso ficar com ela? Por que você a tira
de mim assim? – gritei novamente, não me importando com a tempestade, que
ficava mais forte.
Outro trovão, e um raio rasgando o
céu em um clarão.
— Estou
cansada das suas vontades! Do seu destino! Eu faço o meu destino! E você não
pode me impedir!
Um trovão rebombou nos céus. Ouvi o
estrondo, quase ficando surda, e foi mais rápido do que eu pudesse perceber, um
raio caiu em uma das pedras perto do mar, atrás de mim, partindo-a ao meio, e o
impacto me jogou alguns metros à frente, fazendo-me ajoelhar, prostrada. Uma dor
dilacerante percorreu todo o meu corpo, eu o sentia em choque, como se uma
energia passasse por dentro de mim, enquanto eu gritava e dor. Não consegui me
levantar, enquanto chorava descontroladamente, sentindo a chuva a me confortar.
Não me lembro de quanto tempo fiquei
deitada no chão, mas vagamente vem à minha memória Camila vindo em meu socorro,
enquanto Ana tentava me tirar do chão. Apaguei durante algum tempo, e quando
acordei eu estava dentro da casa, em minha cama. Camila estava sentada em uma cadeira
do outro lado do quarto, enquanto Ana permanecia do meu lado, segurando em
minha mão. Eu podia ver tristeza em seus olhos, e preocupação. Ela passou os
dedos pelo meu rosto, e eu fiz uma careta, ardia.
— O que...
Aconteceu? – eu disse com a voz fraca.
— Ouvimos a
tempestade piorando, e quando você não voltava, chamei Camila pra me ajudar a
te procurar. Vimos o raio caindo perto de você, e corremos lhe socorrer. Você
estava caída no chão, inconsciente.
— Humm... Há
quanto tempo estou deitada? – perguntei, estranhando a claridade que entrava
pela persiana fechada.
— Você passou
a noite inteira dormindo – Camila respondeu. — Já está quase na hora do almoço.
— Mas isso
significa que... – arregalei os olhos, chorosa, direto nos olhos marrons.
— Sim, eu
preciso ir.
Ana se aproximou de mim,
abraçando-me levemente, ainda que firme. Seus lábios beijaram minha testa,
depois lentamente encostaram-se em meus lábios. Ela acariciou meu rosto, e
novamente ardeu, deveria ter um corte no local. Eu chorava, soluçando, sem
querer encarar que novamente ela se ia.
— É para o
nosso bem, meu bem – ela sorriu, segurando em minha mão fortemente, para depois
soltá-la aos poucos. — Adeus.
— Me recuso a
dizer adeus. – a raiva fazendo meus lábios tremerem, enquanto as lágrimas
desciam.
— Então até
breve. – ela sorriu de canto, saindo do quarto.
Camila não se mexeu, nem disse uma
palavra durante intermináveis e longos minutos. Ficou lá, a me observar, seu
semblante preocupado. Após mais um tempo, ela começou a falar:
— Conversei
com Ana enquanto você dormia. Sabe... Ela me pediu para esperar que ela fosse
embora pra lhe contar. – ela se levantou, aproximando-se de mim, sentando-se no
lugar perto da minha cama.
— O que é?
— Ela
pediu-lhe desculpas. Por tudo o que lhe causou, toda a dor e sofrimento. E que
ela a ama, do fundo do seu coração. Mas ela sabe que não pode ficar contigo.
Ela iria a destruir, pouco a pouco, assim como você iria a machucar. E por lhe
amar tanto, ela prefere deixar você ir.
Eu assenti com a cabeça, sentindo um
aperto na garganta e as lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto. Lembrei-me
da noite anterior, e de como eu havia me rebelado, e eu podia sentir meu corpo
balançando-se com os soluços intermináveis. Eu era tola, e ingênua. Não sabia
nada dessa vida, estava cega pelos desejos humanos, tão cega que não podia
perceber que, mais uma vez, o destino estava certo. Fechei os olhos,
sentindo-me infinitamente pequena e completamente arrependida, e pedi perdão. E
agradeci, a Deus, por ter cuidado de mim, e por ter me dado a oportunidade de
finalmente saber do grande amor dela por mim, e de vê-la uma vez mais, ainda
que aquela poderia ser a última vez.
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