N/A: Conto inspirado na música "Apenas mais uma de amor" do Lulu Santos.
Biscoitos e Café
Ela
era doce. Seus olhos verdes se destacavam por detrás das lentes finas dos
óculos de aro redondo que ela usava. Seus cabelos cacheados emolduravam seu
rosto rechonchudo e seus lábios carnudos estavam sempre pintados em tons
pastéis. Todos os dias, às quatro horas da tarde, Gabriela se sentava na
varanda de casa com um livro em mãos, observando a paisagem verde ao seu redor.
Esticava os braços preguiçosamente, estralava o pescoço, respirava fundo e só
então se aconchegava na cadeira. De livros em mãos, mergulhava na leitura
durante minutos, horas inteiras, até que o cheiro de biscoitos invadia suas
narinas, obrigando-a a largar a história. Afinal, ninguém resistia aos cookies
deliciosos de vovó.
Dona Carmélia, vulgo minha avó, já
passava dos setenta e infelizmente não conseguia mais viver completamente
sozinha. Precisava de uma dama de companhia que pudesse, inclusive, dormir lá
aos finais de semana. A dama escolhida foi Gabriela, uma professora de trinta e
dois anos que era sua vizinha. Solteira, sem filhos e morando com o irmão,
Gabriela não se incomodava de ajudar minha avó em tudo o que precisasse. E assim,
dia após dia, enquanto minha avó fazia peripécias na cozinha, ela se
aproveitava de algumas horas de sossego para realizar sua tarefa preferida:
ler.
E nesse momento eu aproveitava ao
máximo aquelas horas para fazer o que eu de melhor fazia: observá-la. De longe,
sentada no chão de madeira da varanda, encostada em uma das pilastras, eu a
olhava, imaginando cada detalhe da sua vida. Será que ela usava óculos há muito
tempo? Nunca desejara ter filhos? Qual era sua banda favorita? O que ela queria
ser quando crescesse? Com quantos anos deu o primeiro beijo? Ela era de
esquerda ou de direita? Nescau ou Toddy? Sim, meus pensamentos nunca seguiam um
padrão lógico de perguntas, mas eu queria conhecê-la da forma como eu pudesse.
Diversas vezes tentei ler o título do livro para então procurá-lo na biblioteca
e tentar descobrir as razões pelas quais ela o lia.
Um dos momentos que eu mais ansiava
e que mais me amedrontava era a hora em que os cookies ficavam prontos.
Sentávamos as três ao redor da mesa, saboreando os biscoitos com uma xícara de
café ou de leite, enquanto conversávamos sobre qualquer coisa. Minha avó lhe
contava a novela, perguntava sobre o livro que estava lendo, fofocava sobre as
outras vizinhas e lhe confidenciava sobre seus amores de adolescência. Eu nada
dizia, com receio de me entregar em um gesto, uma palavra, uma frase fora de
contexto. Porém, quando Gabriela me encarava, sentia meu coração parar por um
segundo; meus joelhos tremiam, minha boca secava e eu me engasgava. Ela me
perguntava sobre a faculdade e eu, gaguejando, comentava sobre minhas aulas de
gramática e língua inglesa.
Gabriela sorria, sempre simpática,
sempre doce, incentivando-me na carreira acadêmica, e eu me derretia feito as gotas
de chocolate dos cookies. Às vezes, enquanto minha avó matraqueava, eu me
permitia olhar para o rosto de Gabi, sonhando em como seria sentir seu perfume
tão próximo do meu nariz, a ponta dos seus dedos na minha pele, seus lábios nos
meus... Até que seus olhos verdes se prendiam aos meus, alertas, denunciando
minhas verdadeiras intenções. Rapidamente eu desviava meu olhar, encarando os
farelos de biscoito em cima da mesa, querendo me desintegrar naquele exato
segundo e me misturar a eles.
Em frente ao espelho, todas as
noites eu ensaiava conversas inteiras e completas com Gabriela, sobre o
significado das estrelas, o vento que soprava todo verão, qual era o melhor
signo e quantos coelhos ela gostaria de ter se ela pudesse. Mas eu jamais
poderia lhe dizer tudo o que eu guardava em meu coração. Acima de tudo, minhas
inseguranças me impediam de viver tudo o que eu ansiava viver. E o medo de ser
repelida, de ser um sentimento unilateral, selava meus lábios. Melhor assim,
ficar subentendido, como uma ideia que
existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer.
Naquela tarde, porém, quando ela entrou
na varanda para ler o seu livro, ao invés de sentar-se na cadeira, sorriu para
mim e se aproximou. Sentou-se ao meu lado, assim mesmo, no chão, com as pernas
cruzadas, a saia plissada cobrindo seu colo. Sorri de forma automática,
sentindo as gotas de suor começarem a brotar na minha testa. Seus olhos verdes
percorreram todo o meu rosto, minhas mãos que contorciam em meu colo, e minha perna que não parava de se balançar.
Ela riu, colocando sua mão quente e macia em cima das minhas, trazendo um calor
súbito que percorreu todo o meu corpo.
— Sabe, Mila...
– ela começou a falar, chamando-me pelo meu apelido, e eu engoli em seco, sem
conseguir desviar meu olhar do dela. — As pessoas subestimam muito o silêncio.
Sua mão acariciava meu braço com uma
ternura que estava me entorpecendo. Minha respiração estava pesada e a garganta
estava seca.
— Acham que
porque sou das Letras só sei interpretar palavras. Porém, sei interpretar
silêncios também. A falta das palavras também diz muito. Sabe o que o seu me
diz?
— O-o quê? –
consegui enfim falar.
— Gosto de
você.
Senti um arrepio por todo meu corpo
e uma falta de ar quase que instantânea. Gabriela apertou minhas mãos, aproximou-se
ainda mais do meu corpo, abraçando-me. Encostou sua cabeça na minha. Eu não somente
gostava dela, amava-a. E ela sabia disso, seu olhar denunciou que meu
sentimento era recíproco. Ficamos juntas por algum tempo, minutos que pareceram
eternos e ao mesmo tempo, passaram correndo. Quando os cookies ficaram prontos
e vovó nos chamou para o chá da tarde, deixei que meus olhos passeassem pelo
rosto de Gabi sem o menor pudor. Seu sorriso me passava confiança e eu tentava
acalmar meu coração; ainda que palavras não fossem necessárias, eu sabia que
uma porta havia se aberto para um novo mundo que ainda precisava ser explorado.
Nervosa, derrubei a xícara de café em cima da toalha branca. Eu havia acabado
de me lembrar: era sexta-feira.
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