Conto - Apostando Tudo

         



      O dia era primeiro de agosto. A primeira aula era de Linguística e Literatura e eu já estava meia hora atrasada. Chegando à faculdade, resolvi ir até a cantina tomar um café enquanto esperava para entrar na segunda aula. Eis que me deparo com a mulher mais linda da minha vida, sentada à mesa perto da parede. Ela lia um livro, as pernas cruzadas, tomando um café. Comprei um cappuccino e sentei-me a certa distância, apenas observando aquela moça tão elegante. De vez em quando, uma de suas mechas loiras caía sobre os olhos e ela logo a colocava em seu devido lugar. Quem era ela? O que estava fazendo ali? Por que eu nunca a havia visto? Aquelas perguntas rondavam minha cabeça durante um tempo.

            Eu estava tão interessada em decorar todos os detalhes que eu pudesse captar daquela mulher que nem percebi seus olhos cinza encarando os meus. Quando a ficha finalmente caiu, engasguei com o gole da bebida que eu havia acabado de tomar! Jesus! E agora? Pensa rápido, pensa rápido! Olhei para baixo, enxugando a boca com as costas da mão. Será que ela percebeu? Após alguns segundos, quando finalmente consegui reunir coragem para levantar a cabeça, vi que um sorriso dançava nos lábios dela. Droga, ela tinha percebido. De repente, ela se levantou. Pegou sua bolsa, jogou o papel no lixo e veio vindo em minha direção. Meu Deus do céu!

            Na verdade, ela necessariamente precisaria passar por mim para alcançar a saída da cantina, porém, seus olhos se cruzaram uma vez mais com os meus, enquanto ela sorria, piscando para mim. Somente percebi que eu estava segurando a respiração quando ela saiu. Respirei fundo, tentando processar aquela cena. Peguei meu celular, digitando uma mensagem. “Bruninha, corre, cola aqui na cantina AGORA!” foi o que eu mandei e em menos de cinco minutos, uma Bruna esbaforida sentou-se à minha frente.

— Você tá bem? Aconteceu alguma coisa? Alguém morreu? – ela perguntou atropelando as palavras.

— Você não sabe quem eu acabei de encontrar!

— Quem?! – ela perguntou curiosa.

— A mulher mais linda da minha vida! Não, a mais linda de toda a minha existência!

— Pelo amor de Deus, Jéssica! Você me chamou aqui por causa de uma mulher? – ela revirou os olhos para o meu drama.

— Mas Bruna, a mulher era mesmo linda! E quer saber a melhor? Ela deseja esse corpinho lindo aqui... – balancei o quadril e os ombros de leve.

— Sei... Não duvido nada que ela seja hetero e só te olhou porque percebeu que você não parava de encará-la... – ela cruzou os braços, arqueando a sobrancelha.

— Como você é estraga prazeres! – dei de ombros.

            Fazia apenas alguns meses que eu havia começado a conversar com a Bruna. Estávamos no primeiro ano de Letras em uma faculdade particular em São Paulo. Apesar de dividirmos a sala de aula desde o primeiro dia, somente no final de Maio é que começamos a conversar, após um trabalho em dupla. Bruna era filha de uma professora de Português e não teve como não puxar o gosto pela língua portuguesa e sua literatura. Ela gostava muito de séries, como eu, adorava música, apesar de gostar de sertanejo, coisa que eu não suportava. Mas dividíamos o mesmo interesse por livros, viagens, chocolates e garotas.

— Amiga, deixa eu te falar. Minha mãe vai comemorar o aniversário dela nesse final de semana e ela me deixou convidar quem eu quisesse. Vou chamar você, a Kelly, aquela minha amiga do cursinho, e a Yasmim.

— Não sei, Bru... Eu tinha prometido para a minha mãe que ia dar uma sossegada em casa. Ela reclamou das minhas noitadas – revirei os olhos. — Como se eu não fosse responsável...

— Aposto que se você souber onde é, vai topar na hora!

— Por quê? Onde vai ser essa tão famosa festa?

— Naquela danceteria, “Disco Tour”, que você está louca pra ir, lembra?

— Não acredito!!! – respondi surpresa. — Gente, vai ser minha chance de finalmente conhecer esse lugar!! Pode contar comigo!

— Eu sabia! – ela respondeu olhando o visor do celular. — Vamos voltar pra sala que vai começar a aula de Literatura Brasileira daqui a cinco minutos.

            Não preciso nem dizer que eu não consegui prestar atenção na aula, não é? Minha mente divagava no olhar daquela mulher misteriosa. Fiquei imaginando de qual curso ela seria. Será que ela realmente havia prestado atenção em mim? Ou só me olhou porque sabia que estava sendo observada? Não vou mentir, sempre me senti insegura com relação a minha própria aparência. Desde pequena tive um corpo rechonchudo, olhos muito escuros e cabelos muito lisos. Nunca fui o tipo de garota que a sociedade quis que eu fosse, e isso teve um impacto negativo em muitas partes da minha vida.

            Descobri minha orientação sexual aos dezesseis anos, ou seja, há apenas três anos eu me reconhecia como mulher lésbica. Durante minha adolescência tentei sair com os meninos, mas eu simplesmente não me encaixava ali. Algo estava fora de lugar e eu não sabia o que era. Foi somente quando beijei minha melhor amiga, em um jogo de Verdade ou Desafio, que comecei a, lentamente, entender o que estava acontecendo comigo. Ainda assim, tive apenas duas namoradas e algumas ficantes. Como continuei insegura com relação à minha aparência, estava sendo difícil acreditar que aquela moça realmente havia olhado para mim com algo além de curiosidade ou mero acaso. Mas isso, com certeza, não impedia que eu olhasse e desejasse as mulheres ao meu redor.

            Durante aqueles dias eu não a vi mais pela faculdade. Quando finalmente chegou o sábado eu estava em estado de êxtase! Sempre amei músicas da Era Disco, dos anos 70 e 80, mas era difícil achar pessoas da minha idade que também gostavam; a maior parte gosta sempre dos hits do momento. Dez horas da noite e eu já estava completamente pronta: calça boca de sino, blusa cinza com brilho, sapatilha preta, o cabelo penteado e maquiagem. Após vinte minutos de metrô e sete minutos de caminhada eu cheguei a frente da danceteria. Mostrei meu RG, peguei a comanda e entrei.

            A casa era simplesmente linda! Ambiente fresco, com os globos de luzes coloridas dançando na pista de quadrados coloridos. Eu não conseguia conter minha animação enquanto eu procurava pela Bruna, ouvindo os clássicos do ABBA, quando finalmente divisei a cabeleira loira, agitando-se de um lado pelo outro em uma mesa perto da parede. Aproximei-me, percebendo que tinham cinco pessoas junto dela. Uma delas era a Yasmim, uma garota bonita, baixinha de óculos e cabelos ruivos em um rabo de cavalo; as outras duas eram mais velhas, ambas asiáticas, imaginei serem amigas da mãe dela. E o único homem era o irmão de Bruna, seu nome era Ricardo.

— Jéssica! Que bom que você veio! – ela me abraçou forte, animada em me ver.

— Nossa, eu amei esse lugar! – respondi, enquanto ela me apresentava ao pessoal da mesa.
           
            Eu ainda não conhecia ninguém da família dela nem os amigos. A Yasmim começou a conversar comigo, comentando como adorava ABBA. Quase pulei de alegria! Uma moça da minha idade que também gostava da banda! Eu estava tão entretida na conversa, rindo e falando sobre nossas músicas favoritas, que só ouvi Bruna me chamando na terceira vez em que ela falou meu nome, tocando de leve em meu braço.

— Jéssica, essa aqui é minha mãe, Renata!

            Não podia ser! Não era possível! Meu corpo todo começou a suar frio tão logo os olhos cinza me encararam. Uma vez mais o sorriso dançava nos lábios agora pintados de vermelho daquela loira. 

 (...)

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