Conto
– Encaixes e Desencaixes
Ali
se encontrava a nossa querida protagonista, sentada em frente à mesa repleta de
comida. Ceia de natal geralmente é grande mesmo, mas estava faltando alguma
coisa ali. Seria o peru? Não. Refrigerante? Não. Já sei, guardanapo! Também
não? Deixa eu ver... O que se sente mais falta na noite de natal? Ah sim,
claro! Como pude me esquecer? A família. E nossa protagonista, tinha família?
Bem, ter ela tinha, mas... O que aconteceu com aquela família já é outra
história. Vai querer ouvir? Tem certeza? Como assim se a história é triste? Não
sei se é triste. Aliás, não é nem triste e nem feliz. Simplesmente é. Assim
como toda história. Bem, se quiser, posso lhe contar. Nossa protagonista aqui
derrama algumas lágrimas dos olhos cansados, em meio a risos espontâneos. Acho
que ela não vai se importar. Tudo bem, eu conto.
O
ano era 1943, toda a família reunida em volta de uma mesa tão grande quanto
aquela. Comidas de todos os tipos, bebidas, muitas risadas. Nossa protagonista
tinha apenas 3 anos. Não entendia muito da vida ainda, mas sabia que naquele
momento ela podia brincar com o que mais queria: o sino. Era um sininho
vagabundo perdido no sótão da casa, mas naquele momento era o presente mais
precioso para ela. Não sabia ainda quem era quem, só que todo mundo era família.
Passava de colo em colo, aproveitando as tias, os tios, avós e primos mais
velhos. Era colocada em um colchão em frente à mesinha com o rádio e ali ficava
durante mais de uma hora, ouvindo a programação. Até que uma tragédia
aconteceu. O sininho caiu no chão. Ela chorou, sem conseguir pegá-lo. E chorou
e chorou e chorou, e só parou quando uma mão estendeu-se e pegou o pequeno
objeto, e a mesma mão, o mesmo braço, se estendeu pra ela, entregando-lhe o
sininho. Olhou para cima, e na ponta daquele braço enorme achavam-se os olhos
mais brilhantes que ela já vira, atrás das lentes dos óculos. E ela deu o seu
melhor sorriso para a vovó que salvara seu bem mais precioso, o sininho.
Agora, com seis anos, ela já estava
crescidinha. Em 1946 a família passou o natal junto, mais uma vez. Dessa vez
ela podia carregar sua boneca de pano para todos os lados, e compará-la com o
neném mais novo na família, sua irmãzinha. Queria abraçá-la, como fazia com a
boneca, mas mamãe não deixou. Logo deixou o neném e saiu correndo atrás do cachorro.
E depois brincou com a prima no quintal, espalhando pedrinhas pelo chão,
deixando os adultos malucos, pois aquelas pedrinhas grudavam no sapato e
espetavam o pé. Que delícia a hora da ceia! Tudo porque a tia trazia-lhe um
doce em específico. Nunca experimentara doce mais gostoso do que aquele! Era de
chocolate, o que toda criança ama, e a parte mais esperada do natal. Fora a
hora dos presentes, é lógico! Já estava grandinha para Papai Noel, mas não se
importava, entrava na dança. Sentava-se na sala, um joelho dobrado pra cada
lado, coisa que a mãe já mandara não fazer, comendo o doce, abrindo os
presentes e se maravilhando com cada um.
A
vida deu um salto, e no natal de 1950 ela presenciou a vinda de mais parentes.
Estranho como sua família era muito grande. Mas até que gostava daquilo.
Significava mais doce! Ajudou sua mãe e sua prima, que chamava de tia mesmo, a
fazer um doce diferente, mas que ela não gostou muito. Ia bolacha e bebida,
dessas que tomamos no ano novo. Achou amargo, mas comeu um pedação assim mesmo.
Ganhou lápis de cor e algumas bonecas no natal, e brincou muito com elas.
Correu em volta da mesa, começou a apreciar os programas no rádio, mas ainda
era muito nova pra perceber que todo ano era a mesma coisa. Só o que sabia que
se repetia, era um show de um cantor de nacional que ela sempre ouvira falar,
mas nunca prestara atenção à letra. Sua avó sentava-se em frente ao aparelho, e
dali não saia por nada. Bem aquilo ela podia entender, pois não perdia uma
música da sua cantora favorita.
E
foi em 1953 que a mudança começou. De todos os presentes, faltava metade da
família. Resolveram fazer separado dessa vez. Ela não entendera o porquê, mas
aceitara. Ainda era apenas uma adolescente, preocupada em comer de tudo,
assistir um especial na televisão recém-comprada, abrir os presentes. Nunca
mais se esqueceria da brincadeira besta que uma de suas tias fez. Colocou um
presente dentro de uma caixa, que colocou em outra caixa, e em outra, e em
outra, e ficou aquele embrulho enorme. Imagina a cara de nossa tímida
protagonista ao desembrulhar caixa por caixa, na frente de todos? Mas não ficou
realmente brava, principalmente depois de comer aquele pavê de bombom. Já era
grande o suficiente para dizer o nome correto do doce.
Alguém
estava faltando. Aliás, algumas pessoas faltavam. O natal de 1957 não foi nada
como ela esperava. Era um tal de “não falo com ela”, “não quero saber”, “já
chega” para lá e para cá. Aquele natal foi escuro, em todos os sentidos. Pouca
comida na mesa, poucos lugares à mesa. E somente a lembrança de um avô querido
que costumava falar para não olhar pela janela de vidro do apartamento, pois
podia cair e se machucar. Quase não se falaram, a mágoa entre os presentes era
tocável no ar frio daquela noite.
Viajou
em 1960.
Quando
retornou em 1964, não sabia o que fazer. Havia mais alguém que não estava em
volta da mesa, e que nunca mais estaria. Chorou dentro do banheiro apertado, e
limpou as lágrimas rapidamente, antes que alguém visse. Quando voltou, a mesa
estava pela metade, todos comiam e riam, brincavam. Mas ela não. A lembrança
forte da tia que a carregava por aí como uma sacola no centro da cidade. Que a
chamava de monstrenga. Que dizia que se ela passasse uma semana na cidade da
tia, ia voltar magrinha, magrinha. Riu ao pegar um pedaço de pernil, e saber
que a tia iria brigar se estivesse ali, porque não aguentava mais pernil.
Em
1966 o natal quase não aconteceu. Não havia clima. Passaram em volta de uma
mesa na casa da namorada do tio. Era tão novo ainda, tão estranho. Recusaram-se
a ficar em volta da mesa grande e habitual, para não gerar mais brigas e
desentendimentos. Riu, brincou, comeu. Foi tudo bem, legal, normal. Estava bom.
Se não fosse pelo fato... De que algo faltava. Aliás, muitos faltavam.
Então
em 1968 a família quase desabou. Ela segurava o sininho apertado entre as mãos
finas de dedos longos. Levou-o aos lábios, beijou-o. A saudade apertava o
peito. Olhava para o objeto brilhante e podia ver a luz que aqueles olhos
irradiaram nele quando o sininho fora resgatado em sua infância. Naquele ano,
abraçou forte a mãe, a irmã, o pai e a avó... Em pensamento, é claro. Sua avó
estaria sempre pronta a pegar o sininho, se ele lhe caísse da mão novamente,
não importava onde estivesse.
O
que dizer de 1969? Apenas um ano depois, houve casamento pouco antes do natal.
O que era a namorada do tio, passou a ser simplesmente tia. Sua nova e querida
tia. Que fazia outros doces maravilhosos, que cuidava do seu tio e que ofereceu
sua casa novamente para a ceia. Muita comida, bebida, cachorros... Nossa
protagonista ainda derramou algumas lágrimas, estava feliz, claro. Mas os
ressentimentos ainda a machucavam por dentro.
Ela
jamais se esqueceria de 1973. Da noite de natal em que sua tia entrara pela
porta, trazendo-lhe o pavê de bombom, e um abraço apertado de mais de cinco
minutos, tão importante que as palavras não precisaram ser ditas. Naquela
noite, ela comeu muito pernil, tomou coca-cola, lambusou-se de pavê de bombom e
ficou feliz ao desembrulhar um presentinho ou outro dado pelos pais ou pelas
tias.
Aquele
natal de 1975 foi o primeiro natal que ela ousou levar a sua namorada. Foi
estranho, não conseguiu comer o pavê de bombom, parecia-lhe sem gosto. E o
pernil, estava salgado demais.
De
1976 a 1979 viajou novamente.
Finalmente,
em 1980 resolveu trazer a namorada novamente, mas que agora era sua esposa.
Estufou o peito e entrou de mãos dadas em casa. A prima a abraçou, riu,
cumprimentou a namorada, aliás, esposa. Levou-a para perto do resto do pessoal.
Sentiu um aperto no peito, não havia mais pernil naquele ano, e nunca mais
haveria. Mas nunca comeu um pavê de bombom tão gostoso desde criança. Sua esposa
experimentou, e achou uma delícia. Depois, não houve troca de presentes, mas
havia vinho. E ela tomou. Nunca fora de beber, mas sentia que precisava do
vinho. Tomou três taças, do vinho mais doce que já experimentara em toda a sua
vida.
1990.
Já não era mais a mesma coisa, não era mais a mesma família. Fora passar o
natal na casa da esposa. Sentia-se em casa, sentia falta da própria família,
mas estava feliz. Sua esposa pedira-lhe para experimentar o bolo de limão, e
ela adorou. A outra lhe dissera que aquilo tinha gosto da sua infância. Uma
lágrima rolou pelos olhos, indo se depositar nos lábios doces da nossa querida
protagonista, com um sorriso no rosto.
Foi
morar no estrangeiro e só voltou depois de 1999.
2010
fora difícil. Não queria falar sobre ele. Não havia mais farofa fria. As duas
pessoas que faziam sempre também não estavam mais ali.
E
agora, em 2020, nossa protagonista encontra-se novamente em volta da mesa
gigante, mas não tão grande agora, em uma noite de natal. Há pernil, há farofa,
pavê na geladeira, show na televisão, vinho, coca-cola, sinos e decorações na
árvore. A mesa está vazia. Estão todos na sala abrindo os presentes, dizendo
para as crianças que o Papai Noel acabara de deixar tudo aquilo. E havia riso.
E nossa protagonista sorriu, um sorriso que iluminou aquela mesa, e de repente
todos estavam sentados à mesa novamente, sorrindo para ela. E naquele momento
ela soube, revivendo as memórias de todos os natais da sua vida, que fora a
pessoa mais feliz do mundo. E então descansou.
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