A
Primeira Vez
A primeira vez dói. Isso é fato. E
então você sente um enorme incômodo. Não sabe o que fazer direito. Fica
assustado. Mas continua fazendo. E então começa a sentir prazer naquilo. O
prazer na dor. O prazer da dor. O torpor. A sensação. Acredito que muitos de
vocês já passaram por isso, e se não, provavelmente já cogitaram. Ninguém é tão
perfeito assim, não é? Irônico até, tocar nesse tópico, quando se é considerada
louca. Maluca. Estranha. Estúpida. Tudo, menos perfeita.
A primeira vez foi no banheiro.
Engraçado como as palavras podem lhe machucar, mesmo quando você pensa que são
inofensivas. Elas se transformam em bolas de neve, que vão crescendo e
crescendo, até o dia em que a avalanche vem e acerta todo mundo. Palavras jogadas
ao acaso, como a fumaça que você exala brincando em um dia de frio extremo. É
até engraçado, se parar para pensar. Realmente hilariante. A gargalhada saiu da
minha boca seca, enquanto eu fitava meus olhos cinza no espelhinho do banheiro.
Patético. Foi o que pensei olhando para os azulejos brancos, a privada, a pia
quebrada, o espelho sujo, e meu reflexo distorcido.
A primeira vez é o passo decisivo.
Depois que se começa, é impossível parar. Assim como as primeiras palavras de
ódio, depois que lançadas, não se pode recuperar, os cortes, depois de feitos,
não se pode mais apagar. E um pedido de desculpas, um sinto muito, não ajuda em
nada. Depois que o espelho se estilhaça em mil pedaços, adianta tentar colá-lo
e dizer-lhe: Desculpa, espelho mais bonito que já tive, eu lhe amo? Exato! Para
o inferno com as suas desculpas!
A primeira vez é a que vicia. A dor
e o prazer podem ser mais próximos do que você imagina. Os filetes negros
rubros abertos em todos os lugares dos braços, das pernas, e dependendo da
profundidade da dor, no estômago. O que antes era algo feito às escondidas no
banheiro sujo, agora é aberto em pleno quarto, totalmente descuidado. Os bichos
de pelúcia enfiados no armário, os saltos altos jogados embaixo da cama, as
saias rasgadas e trocadas por jeans equivalentes. O negro começa a tomar conta
das roupas, assim como tomou conta da minha alma.
Depois, é só se sentar e ficar
esperando a hora do show dos horrores. As lágrimas escorrem dos meus olhos
opacos, já não posso e não quero contê-las. Aperto o braço com força, sentindo
a dor e o sangue escorrer por entre meus dedos. Não são tão profundos para
mandar-me para o hospital, mas o suficiente para me tirarem de casa.
Os olhos fechados. O torpor. Já não
sei mais onde estou. Mas não é em casa. Vejo pessoas andando pelas ruas
movimentadas de alguma metrópole agitada, como Nova Iorque, por exemplo. Sim, é
Nova Iorque, uma cidade tão grande que você se sente pequeno perto dela.
Insignificante. Mas isso não é ruim, não. Pode-se andar de vestidos curtos,
longos, calças de grife ou calças rasgadas. Vejo um menino vestido de
cinderela, e uma garota de pirata. E a mãe deles, usando uma roupa de pato.
Ninguém nota. Ninguém ri. Somente a família, compartilhando o momento da festa.
Vejo pessoas escutando ritmos diferentes de música, e dançando no meio da praça
em uma terça-feira na hora do almoço. Vejo executivos e advogados passando
apressados. Vejo uma garota magricela dentro da fonte, outra tirando foto, e a
garota que é gorda flertando com o cara de boné e chinelo que passa perto dela.
Ele não quer nada com ela, pede desculpas e diz que está apressado. Ela sorri,
faz palhaçada, agradece, e quando ele sai, antes que ela pudesse cair no
pranto, a amiga a empurra para a fonte. Elas riem.
Não
há chutes e murros. Não há olhos inchados e lâmpadas quebradas na cabeça. Não
há competições para saber quantas garotas você pegou na balada. Não há jovens
tentando ser o mais bêbado a sair da festa na madrugada, sem a virgindade. Não
há mais palavras de ódio semeadas ao vento, levadas a todos os lugares. Não há
garotas se pesando o tempo inteiro, se recusando a comer. Não há espelhos. Não
há perfeição.
O escárnio sai de meus lábios
rachados, perfeição, não há nada mais buscado nesse mundo do que a perfeição
humana. Sem saber que quanto mais se busca, mais imperfeito se torna. Não sou
hipócrita, também procuro a perfeição. E como procuro. O escarlate manchado e
marcado a ferro e fogo na minha pele branca e leitosa.
Os
cabelos desgrenhados, as unhas sujas, as bochechas cheias de espinhas. Os olhos
sem foco, as lágrimas já não saem mais. Os ouvidos acostumados ao zumbido das
conversas maldosas. Acostumados a ouvirem como ela sabe dramatizar tão bem que
deveria entrar para uma escola de teatro. Seria contratada pela Globo.
A primeira vez, já nem lembro quando foi. São
tantos cortes que já não consigo mais contar. Meus olhos se focam novamente, e
o que vejo não me aterroriza. A cara de espanto da minha mãe, seus olhos
saltando das órbitas. A culpa, estampada no rosto magro e encovado. O sorriso
se abre em meus lábios. Vê, mamãe, como sua pequena princesa também sonha com
contos de fadas? Vê, como sua princesa consegue ser a melhor atriz da cidade?
Vê, como seu sangue é tão vermelho como o de qualquer outro ser humano no
planeta Terra?
Agora você me vê, mamãe? Agora todos
conseguem me ver? Conseguem saber, entender? Alguns me acham louca, alguns me
chamam de doida e acham que eu deveria ser internada. Outros, nem chegam perto
de mim. E o que eu faço? Saio de madrugada e grito no meio da rua. Que me achem
louca, estúpida, feia, idiota, tola, burra. Já não importa.
A primeira vez dói. Mas depois que você fizer,
não vai se arrepender. Vai até se sentir melhor. Acredite em mim, pode confiar.
As coisas são mais fáceis depois. É tão simples, você não vê? Sério.
Nunca é tarde demais para começar.
Nunca é tarde demais para puxar conversa com o estranho ao seu lado no ônibus,
com a garota nova na escola, com a senhora no banco.
A primeira vez que você for
amigável, pode ser a última vez que alguém pegue em alguma lâmina.
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