Conto – Encontro Casual
Eu
já estava pronta para sair, mais um sábado que eu iria passar fora. Fazia meses
que eu não parava mais em casa nos fins de semana. Sempre um barzinho
diferente, uma boate nova, dessa forma eu não via a vida passar e as
oportunidades sendo jogadas fora. Eu estava tão acostumada a essa vida doentia
de agitação, que nunca quis sair dela. Olhando-me no espelho, o rosto carregado
em maquiagem, as roupas negras e brilhantes, a quem eu estava querendo enganar?
Tentava me convencer de que eu estava bem, mas eu sabia que não estava.
Suspirei, cansada demais. Por mais que eu vivesse na noite, eu já estava morta
por dentro há muito tempo. Sentia meu corpo cansado daquela rotina agitada. Mas
era o que eu sabia fazer... Esconder-me na multidão, ser mais uma desconhecida,
ninguém nunca prestava atenção em mais um rostinho bonito, um corpo dançando
loucamente no ritmo das batidas.
Apoiei-me no mármore em baixo do
espelho, suspirando pesado, a dor quase física. Um sorriso irônico nos
lábios... Quem um dia iria prestar atenção em mim? Por mais barulho que eu
fizesse, para ser percebida, só me fazia envelhecer sozinha, amarga. Talvez o
amor não fosse feito para mim... Talvez eu não fosse para ser uma mulher.
Apenas algo, que come, bebe, ri, faz escândalo e de repente some. Meu coração
estava seco, sedento de alimento, sentimento. Minha alma sentia-se pesada,
enquanto minha mente enlouquecia a cada segundo. Mas eu gostava disso... Essa
dor, que chegava a ser física, me fazia sentir viva. Eu me alimentava dos meus
próprios fantasmas, fazendo com que a loucura não me deixasse morrer. Eu sabia
que não era o melhor para mim, mas era o meu porto seguro. Sabia que sempre que
desse um passo em falso, era só voltar correndo para minhas velhas ilusões,
elas estariam lá, não iriam me decepcionar.
Suspirei novamente, decidindo-me:
fui até o banheiro e retirei aquela maquiagem, depois lavei o rosto. Voltei até
o quarto e troquei de roupa. Coloquei jeans, camiseta, moletom, tênis e deixei
os cabelos soltos. Peguei minha bolsa e saí. Já era tarde da noite, e o tempo
estava fresco, mas não me importei. Eu precisava respirar um pouco. Andei
durante algum tempo até uma praça que eu costumava ir sempre. Estava vazia, e
apesar de eu saber exatamente quais os perigos que podiam conter uma praça
escura à noite, sentei-me na grama, encostada em uma árvore. Era mais fácil que
alguém dentro da boate batizasse minha bebida e me levasse para algum lugar
desconhecido do que alguém prestar atenção em mim naquele canto. Até pensei em
colocar uma música para ouvir, mas estava cansada do barulho. Quis ouvir o som
do silêncio por aquela noite. Eu precisava de tranquilidade.
O que não durou muito. Uma moça se
aproximou, mas não pareceu me ver, o que somente se confirmou com o susto que
tomou quando finalmente sentiu minha presença. Olhou-me ressabiada, mas como
não dei atenção, ela se sentou no banco perto de mim, à minha frente. Ficou
olhando para o nada, enquanto eu parei para analisá-la. Usava preto da cabeça
aos pés, tinha os cabelos lisos e castanhos. Seria ela mais uma errante na
vida, assim como eu? Por um momento imaginei quais seriam os motivos para estar
sozinha ali àquela hora da noite, e comecei a sorrir, perguntando-me se ela
imaginava o mesmo que eu.
— Noite
difícil? – ouvi sua voz pela primeira vez.
— Depende...
Um pouco... – respondi incerta.
— Está
incômodo aí?
— Até que
não... – estranhei a pergunta, mas logo entendi, quando ela se levantou e sem a
menor cerimônia, sentou-se ao meu lado, esticando as pernas.
— O banco está
gelado... – soltou um risinho.
— E aqui está
quentinho? – perguntei irônica.
— Me diga
você, que está sentada aí há um tempo. Eu acabei de chegar. – ela disse séria.
— Okay... –
fiquei quieta novamente.
Encostei a cabeça no tronco, olhando
para o céu, para as estrelas, e até que sua companhia era reconfortante. Não
percebi que as lágrimas desciam pelas minhas bochechas, enquanto eu chorava
silenciosamente. Meu peito estava transbordando, e eu não queria que ela me
visse chorar, nem me conhecia... Surpreendi-me ao sentir seu braço enlaçar o
meu, enquanto ela encostava a cabeça em meu ombro. Fiquei quieta, respirando
profundamente, sentindo que as lágrimas secavam em meus olhos. Eu me sentia
mais calma.
— Eu gostei do
seu perfume... – ela disse do nada.
— Obrigada... –
agradeci.
— Mas quem usa
perfume para sentar sozinha à noite no meio da praça? – imaginei que ela estava
sorrindo, já que eu mesma sorri.
— Eu uso...
Pra atrair moças solitárias até mim... Acho que funcionou. – ela soltou uma
risada, e continuou deitada no meu ombro.
— Talvez...
Com um cheiro bom desses... – ela virou o rosto para o meu pescoço, encostando
o nariz e a boca em mim. Senti-me arrepiar, mas não consegui culpar o frio.
— Sente-se
melhor? – ela pareceu não entender minha pergunta, então levantou a cabeça,
olhando-me confusa. Seus olhos castanho-claro brilharam à luz da lua. Balançou
a cabeça afirmativamente. — Ótimo, então agora é minha vez... – encostei a
cabeça em seu ombro.
— Mas eu...
Não estou usando perfume... – ela gaguejou, parecendo um pouco desconfortável
no começo.
— Hm... Então
esse cheiro bom é da sua pele? – perguntei, encostando a ponta do meu nariz
gelado em seu pescoço, fazendo-a arrepiar.
— Não sei...
Se é bom... – ela riu. — Mas é da minha pele sim.
— É bom sim...
– dei um beijo em sua pele, e ela suspirou.
Ficamos um tempo ali caladas. Em
minha cabeça os pensamentos corriam rápidos. Eu não fazia ideia de quem ela
era... Poderia ser uma assassina, ou uma menina assustada... Poderia ser
casada, solteira, enamorada, ficante de alguém, será? E se nem gostasse de
meninas, como eu supunha? Os receios começaram a me deixar inquieta, e ela
percebeu. Colocou a mão nas minhas, segurando-a, alisando meus dedos, e deu um
beijo no topo da minha cabeça. Respirei fundo, tentando aproveitar aquele
momento, sem ter que me preocupar, ou me precipitar.
Aos poucos, levantei um pouco meu
queixo, e ela foi se virando pra mim, até que sua cabeça estivesse bem próxima
à minha. E seus lábios gentilmente tocaram os meus. Apenas um leve roçar, um
pedido, que eu logo consenti, entreabrindo os meus. Nos beijamos com calma,
apesar de ter sido bem intenso. Mordisquei seu lábio inferior, e sorri, dando
pequenos beijos em seu rosto, para depois voltar a deitar a cabeça em seu
ombro. Mas agora me ajeitei mais em cima dela, virando-me de lado e colocando
uma das pernas entre as dela.
— Você me acha
louca? – perguntei de repente.
— Por que? Eu
nem te conheço...
— Exatamente
por isso... Nem me conhece, e aqui estamos... – olhei séria para ela.
— Você me acha
louca? – ela rebateu a pergunta. Olhei-a sem entender, e ela sorriu. — Eu
sentei ao lado de uma desconhecida na praça no meio da noite e ainda a
beijei...
Comecei a rir, como há muito tempo
não fazia. É, fazia sentido... Éramos ambas loucas, doidas de pedra, talvez. Mas
em tantos meses, fora a loucura mais sã que eu já tivera. Nunca ficara tanto
tempo em silêncio em toda a minha vida. Nunca ficara tão exposta, livre de
todas as minhas máscaras, acessórios. Achei no mínimo curioso.
— Como você me
viu?
— Não vi, na
verdade... Eu só estava procurando um lugar tranquilo e solitário para ficar em
paz, e me assustei com você aí, escondida nas sombras...
— E por que se
aproximou?
— Não sei... –
ela pareceu pensar por um segundo. — Talvez porque você estava quieta, comum,
querendo ficar em paz como eu... Achei que não faria mal tentar me aproximar.
— Hum, é
verdade...
Fiquei intrigada... Pela primeira
vez, alguém estava me vendo, reconhecendo, e de uma forma completamente
inacreditável e improvável. Sempre quis saber a resposta para todas as
perguntas, sempre pensei demais em tudo, mas aquela estranha parecia não
compartilhar da mesma ansiedade. Ela voltara a olhar para o céu, enquanto eu me
endireitava e encostava a cabeça no tronco da árvore novamente.
— Eu não tenho
pra onde ir... – ela finalmente disse. Olhei para o seu rosto, e as lágrimas
escorriam livremente.
— Como assim? –
perguntei preocupada. — Não tem casa?
— Tenho... –
ela sorriu. — Na vida... Não tenho pra onde ir, não sei o que fazer... – ela suspirou
e eu pude sentir o peso que havia em seus ombros.
— Bem-vinda a
bordo! – fiz sinal de continência. — No barco dos sem destino, seu desejo é uma
ordem! Cada dia nós seguimos a vontade de um dos tripulantes, cada dia é uma
aventura! – arranquei gargalhadas dela.
— Mas é boba! –
dei-lhe um cutucão, e ela entrou na brincadeira. — E se eu embarcar nesse
barco, ganho o quê?
— Um colete
salva-vidas para quando estiver à beira do desespero, uma garrafa de esperança
para quando precisar encher a cara, uma semana de diversão vendo as estrelas e
nadando com as sereias, e se precisar, muitos beijos boca a boca em caso de
afogamento.
Agora ela ria sem conseguir parar,
enquanto eu sorria, sentindo-me otimamente bem por ter feito a noite daquela
estranha. Ela me olhou sorrindo e aceitou os ingressos para o cruzeiro no meu
pequeno barco. Levantei-me, puxando-lhe pela mão, e andamos lado a lado por
algumas ruas até o meu apartamento. Ela não queria subir de jeito nenhum,
totalmente sem graça, dizendo nem me conhecer direito. Preferia que nos
víssemos outro dia, mas eu sabia que precisava da presença dela naquela noite.
Pela primeira vez eu não me sentia vazia. Insisti, até que ela aceitasse subir
pelo menos um pouco. Arrastei-a para o
meu quarto, enquanto ela protestava de todas as formas, querendo ir embora.
— Olha, eu não
vou te obrigar. Se quiser mesmo ir, pode ir, não vou te forçar a ficar. Só
queria sua companhia o resto da noite, para eu não ficar... Sozinha... – meus olhos
se encheram de lágrimas, e eu me amaldiçoei por isso. Odiava que me vissem
chorar. Não entendia como eu podia estar tão sensível assim na presença de
alguém.
— Tudo bem,
tudo bem, eu fico.
E ela ficou. Não apenas no meu
apartamento, mas na minha cama. Foi o caminho mais lógico a se tomar. Sua pele
precisava do contato com a minha, tínhamos urgência em fundir nossos corpos,
sentir o toque uma da outra. Precisávamos do calor uma da outra naquela noite
fria e solitária. Meus dedos dedilharam incontáveis melodias em suas costas,
enquanto seus dedos escorregavam para dentro de mim. Deixei que meus lábios
experimentassem cada canto inexplorado do seu corpo, conhecendo-a, sentindo-a,
entendendo-a. Ouvi seus gemidos e gemi em seu ouvido. Fiz do seu corpo meu
aconchego, e fiz do meu corpo tatuagem no dela. Gravei minhas digitais na pele
delicada, e me abriguei em seus braços, completamente exausta.
E ela ficou. Não apenas por uma
noite, mas por uma semana. Continuamos nos falando, e nos encontrando sempre
naquela praça. Ela voltou. Por mais de meses, continuei observando ela dormir
em meu ombro, chorar no meu colo, e rir junto comigo. Sempre acostumada a
pensar demais e rotular meus sentimentos, tentei entender o que acontecia. Mas não
havia como... Era impossível... E depois de tanto tempo, tantas semanas, tantos
meses, tantas transas, tantas intimidades... Eu descobri que não precisava
entender, somente aproveitar. E numa lucidez surpreendente, descobri que não
conseguia mais chorar pelos meus fantasmas. Eu havia quebrado a corrente, não
estava mais presa ao passado. Tive medo, por estar andando em corda bamba, mas
me acostumei a me sentir livre. Bem comigo mesma. E em paz.
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