Oneshot - The Secret Side


Há muitos e muitos anos, reza a lenda, em um pequeno vilarejo, que a mansão da montanha era amaldiçoada. Ninguém sabia exatamente o que aquelas paredes escondiam, mas em toda a noite de lua cheia, podia-se ouvir um grito estridente vindo das profundezas da mansão. Havia também conhecimentos de uivos durante quase toda a noite. Ninguém nunca fora suficientemente corajoso para ir até lá; aliás, os que foram nunca mais voltaram. A vila sempre temeu o que quer que seja que estivesse confinado lá dentro, e por puro desconhecimento, e os sons que escutavam durante a noite, apelidaram o morador de fera. Toda semana, nas sextas-feiras, uma moça saia da mansão, e atravessava o vilarejo, realizando compras e trocas com o povo. Ninguém nunca soube seu nome, ninguém nunca soube da onde ela vinha, e ninguém nunca prestava atenção na moça da capa vermelha.

A não ser a jovem que era a dona da biblioteca; perdida no meio dos livros, constantemente esquecida, pois ninguém tinha o hábito de ler muito a não ser ela mesma. Belle era seu nome, sempre observava a moça da capa vermelha passar diretamente pela porta da biblioteca. Sempre se perguntou quem ela era, mas o que a deixava mais curiosa, era por que a tal moça nunca entrava em seu estabelecimento. Belle vivia com seu pai, que era inventor, e trabalhava naquela biblioteca há anos. Amava seus livros acima de qualquer coisa. Lendo, ela imaginava, conhecia novos lugares, pessoas diferentes, e vivia muitas vidas. Por esse fato, era bem inteligente, e o pessoal da vila costumava implicar com ela por isso. Tomavam-na por tola e sonhadora, mas na verdade ela era bem esperta e tinha um grande senso de justiça.

Em uma sexta-feira, com a biblioteca vazia, Belle saiu lá fora e esperou. Olhava, ansiosa, as pessoas que passavam... O padeiro colocando os pães na janela, a florista arrumando os vasos na banca... E então, ela a viu. Primeiro a capa vermelha, que se destacava na multidão. A moça passou pelas bancas, com menos pressa naquele dia, e quando passou perto de Belle, não notou sua presença, não fosse a Castanha chamar-lhe a atenção:

— É falta de educação não cumprimentar as pessoas, sabia? – A moça parou, mas não se virou, ficou ali, sem saber se respondia, se ia embora, ou se nada fazia. Por fim, disse, sem fazer menção de mostrar-se.

— Bom dia. – sua voz era rouca e baixa.

— Bom dia. – Belle respondeu feliz de ter feito contato. E aproveitando a oportunidade, perguntou. — Não que eu tenha algo com a sua vida, mas por que você nunca passa na biblioteca?

— Não preciso. – a moça disse ainda sem se virar, secamente.

Belle achou estranho e replicou, franzindo o cenho:

— Como assim não precisa? Todo mundo precisa de livros... – ela respondeu rindo, dando de ombros. A moça ficou quieta por um minuto, então finalmente virou-se para ela, mostrando o seu rosto e seus olhos escuros.

— Eu tenho minha própria biblioteca. – ela respondeu, divertida.

A castanha foi pega de surpresa, e reparou primeiro no rosto da desconhecida, antes de prestar atenção em suas palavras. O rosto estava pálido, envolto por cabelos escuros, quase negros; olhos expressivos e intensamente negros, e lábios rosados e grandes, que se curvavam em um mínimo sorriso.

— Isso é... Incrível! – foi o que ela conseguiu dizer após um tempo. — Você também tem uma loja...? – ela sorriu de canto, indicando o estabelecimento, atrás de si mesma, com um aceno de cabeça.

— Oh, não... – a moça riu. — É dentro da minha casa mesmo. – ela sorriu divertida.

— Oh... Quem me dera ter tantos livros quanto eu quisesse dentro da minha casa.

— E não tem?

— Não... Minha casa é pequena e não tem espaço para tanto livro assim... – ela deu de ombros.

— Uma pena... – e então subitamente a moça ficou tensa. — Eu tenho que ir, já estou atrasada. Foi um prazer lhe conhecer. – Ela deu alguns passos à diante, e então a castanha lhe gritou:

— Eu nem sei seu nome... – a moça parou, virou-se de frente, e gritou de volta:

— Ruby! – e virando-se de costas novamente, desapareceu entre as ruas.

Finalmente Belle conhecera a moça misteriosa, que nem era tão misteriosa assim. Achou-a simpática, e ficou maravilhada com o fato de ela ter uma biblioteca particular. Sorriu para si mesma, contente com sua pequena coragem, e entrou novamente na loja. Raramente as pessoas falavam com ela, além dos cumprimentos habituais, será que faria uma amiga? Ela esperava sinceramente que sim. Ansiava encontrar com a moça da capa vermelha, Ruby, aliás, o nome combinava muito bem com ela, mas infelizmente teria que esperar até a outra semana para lhe rever.

Nada acontecia de diferente na vila, era tudo sempre igual, e isso chateava Belle. Ela estava louca para viver aventuras como nos livros, poder ajudar as pessoas de alguma forma, poder realmente fazer alguma coisa. Assim, a semana passou devagar para ela. Quando finalmente chegou sexta-feira, naquele mesmo horário, Belle esperou do lado de fora da biblioteca, observando a agitação das vendas dos estabelecimentos, quando avistou a capa vermelho vivo por entre os passantes. Sorriu intimamente. Dessa vez, a moça olhou em sua direção, e sorriu, aproximando-se.

— Bom dia. – a moça ofereceu-lhe um sorriso.

— Bom dia! Não sabia se voltaria...

— Me disseram que é falta de educação não cumprimentar as pessoas. – Ruby sorriu, levantando uma sobrancelha.

— Muito bem, a moça não é só inteligente, mas bem educada também. – a castanha riu, brincando com a morena.

— Ah, acabei de lembrar, eu trouxe isso para você. – a morena revelou uma cesta que trazia no braço. Abriu-a, tirando um embrulho de dentro, mostrando-a a Belle. — Minha avó faz ótimos bolos e eu resolvi trazer-lhe um pedaço.

— Muito obrigada! – ela agradeceu, pegando o embrulho. — Nem precisava...

— Espero que goste! – a morena disse, e apressando-se, despediu-se dela, prometendo que voltaria. E antes que fosse embora, gritou de repente: — Eu nem sei seu nome...

— Belle! – ela sorriu de volta, e a morena desapareceu novamente.

Ela entrou novamente na biblioteca, e colocando o embrulho em cima do balcão, abriu-o. O bolo estava bem fofo, e com um cheiro ótimo. Ela o comeu, e estava tão bom! Desejou que tivesse um pouco de chá para poder acompanhar, mas ainda assim estava bom. Muito gentil da parte da moça trazer-lhe o bolo, mas o que Belle poderia dar-lhe em troca? Não tinha nada que realmente soubesse fazer... Só tinha... Livros. Por isso, passou um bom tempo escolhendo um livro que achasse que agradaria Ruby. Não fazia ideia do que ela gostava de ler, mas baseada no que vira na moça, escolheu um título e o deixou separado, esperando pela próxima sexta-feira.

O que ela não sabia, era que a moça da capa vermelha iria aparecer mais cedo do que ela imaginava. Na quarta-feira, Belle abriu a biblioteca como de costume, cedinho, e quase morreu de susto ao se deparar com a moça esperando do lado de fora, olhando pela janela. Sorriu feliz, enquanto a convidava para entrar.

— Não a esperava antes de sexta...

— Eu sei, mas resolvi passar antes aqui para lhe fazer uma surpresa. – Ruby sorriu, apoiando-se no balcão.

— Adorei a surpresa. E ah, eu amei o bolo, muito bom! Agradeço novamente. – Belle disse, empilhando alguns livros que estavam espalhados em cima do balcão.

— Ótimo! Pois vim lhe chamar para ir até minha casa, tomar chá da tarde, na sexta-feira. – ao ouvir o convite, Belle virou-se para encarar a visitante, meio sem graça.

— Oh obrigada, adorei o convite, mas não quero lhe incomodar...

— Eu vou gostar muito se vier, vou adorar a companhia. Sinto-me muito sozinha naquela mansão... – ela comentou com voz triste.

— É você que mora na mansão? – Belle perguntou, parando subitamente onde estava, surpresa.

— Sim... – a morena notou a mudança. — Por quê?

— Nada... – ela tentou sorrir. — É uma casa muito grande, imagino que se sinta solitária mesmo... Por que não se muda?

— Não dá... – Ruby respondeu, afastando-se do balcão e cruzando os braços. — Bem, espero você lá então, na sexta-feira às quatro da tarde.

— Estarei lá! E antes de você ir, eu... – Belle foi até o fim do balcão e pegou o livro que tinha separado. — Eu queria lhe dar algo... Separei esse livro para você, espero que goste.

— Para mim? – Ruby nunca tinha ganhado algo de alguém de tão espontânea vontade. — Obrigada! – ela agradeceu com um sorriso sincero.

E assim, Ruby foi embora, esperando ansiosa, pela primeira vez, para que a sexta-feira chegasse. Ela vivia reclusa dentro da sua mansão quase que todos os dias, exceto no fim da semana, que ela andava pela vila fazendo compras. Sua avó morava por perto, e toda semana passava na mansão para deixar-lhe os bolos que fazia, e confirmar se estava tudo correndo bem. Desse modo, a moça não tinha qualquer amigo, a não ser os empregados que limpavam a mansão, e os livros que lia. Sentia-se triste e deprimida por viver trancafiada lá dentro, mas sabia que era necessário. Agora, voltava feliz para casa, sabendo que tinha feito uma nova amiga, e que se importava com ela.

Passou os dias arrumando sua casa, deixando tudo em ordem para o dia especial, pedindo para que os empregados deixassem a biblioteca bem confortável. E então, no fim da tarde de quinta-feira, sentou-se na poltrona do cômodo e começou a ler o livro que ganhara de presente. A leitura ia fácil, e quando percebeu, já anoitecera. Assustada, levantou-se de um pulo, e o livro caiu de suas mãos, enquanto ela saia correndo, deixando o objeto esquecido no chão da biblioteca. Correu escada a cima, indo para a parte leste da mansão. Entrou no quarto e logo fechou a porta, colocando a pesada tranca e o cadeado. O lugar era escuro, com taboas cobrindo as janelas, e estava uma bagunça. Havia coisas quebradas por toda a parte, e muita poeira e sujeira no local. Ninguém nunca entrava ali, a não ser ela.

Naquela noite, ninguém conseguiu dormir direito na vila, principalmente Belle, que observava a noite fria da janela do seu quarto. Ouviu os uivos vindos de longe, e estremeceu. Será que a moça misteriosa era a dona do lobo? Será que os gritos que eles ouviam, eram dela? E se sim, por que gritava? O que será que havia de errado naquilo? Tinha receio de descobrir, mas se sua nova amiga estava em perigo, ou sentindo dor, machucada, ela deveria ajudá-la. Tirou aqueles pensamentos da cabeça, e decidiu que se Ruby precisasse de ajuda, ela iria estar lá por ela. Deitou na cama e tentou dormir, pensando no belo dia que teria assim que o sol amanhecesse.

Belle acordou cedo, como de costume, e foi abrir a biblioteca. Trabalhou até depois do meio dia. Então, voltou para o chalé onde morava, e foi se arrumar. Escolheu um vestido azul de decote em v, uma sapatilha, e prendeu o cabelo castanho em um rabo de cavalo. Tinha os olhos claros, de tão azuis eram quase cinza, e amendoados. Pegou sua capa cor de caramelo e fechou a casa. Andou por uma trilha, ansiosa em chegar logo à mansão. Depois de uns bons minutos, finalmente viu o casarão surgir a sua frente. Havia um portão de grades enferrujadas na frente. Estava entreaberto, então ela entrou. Um grande jardim cercava a casa, e na frente havia um chafariz. Belle nunca tinha visto nada tão bonito, e nunca imaginara que a anfitriã pudesse viver tão sozinha em um lugar tão belo como aquele.

Ao bater na porta, um empregado veio atendê-la. Informou-a que a senhorita Lucas estava a esperando na biblioteca. O interior da casa era tão bonito quanto o exterior. Ela entrou em um grande hall, e pode ver que do lado direito estava a sala de jantar, do lado esquerdo, por onde ela passou, tinha um escritório, e então lá no fundo havia outra sala. Tudo muito bem arrumado, com móveis de madeira, estátuas e mesas de mármore. Belle passou por tudo aquilo, mas o que a deixou mais maravilhada, foi quando finalmente entrou na biblioteca. Ela era grande, estantes e mais estantes circundavam o quarto. Não era nada muito suntuoso, mas em comparação com a sua biblioteca...

— Belle! – a voz animada de Ruby a despertou. A moça saiu da poltrona em que estava sentada, vindo cumprimentar Belle.

— Hey, Ruby! – a castanha abraçou a anfitriã. — Uau! É... É... – ela olhava a sua volta, observando cada detalhe do cômodo.

— Gostou? – a morena perguntou ansiosa.

— Claro, é incrível! – ela se aproximou das prateleiras, olhando os livros mais de perto, passando a mão pelas lombadas, sentindo sua textura...

— É sua.

— Como? – Belle foi pega de surpresa. Virou-se de frente para Ruby, com os olhos arregalados, sem entender o que aquilo queria dizer.

— Você pode vir a minha casa sempre que quiser, para visitar a biblioteca. É sua. – ela sorriu, sentindo-se feliz de poder fazer isso por Belle. Tão feliz, que se esqueceu de um pequeno detalhe sempre presente em sua vida.

— Obrigada! Obrigada! – Belle veio correndo e abraçou Ruby apertado.

A morena, surpresa com tal ato, deixou-se ser abraçada, envolvendo seus braços ao redor da cintura de Belle. Sentiu algo que nunca havia sentido antes, por um momento, desejou que aquele abraço durasse para sempre. Era um conforto, um carinho... Genuínos. Desfizeram-se do abraço e Ruby levou Belle até a sala de jantar, para que elas tomassem chá e comessem bolos. Ao passar pelo corredor, a convidada viu a parte de cima da casa; de um lado, um corredor claro, onde dava para ver três portas. Do outro, via-se apenas uma única porta, o corredor estava escuro. Curiosa, não aguentou:

— O que tem naquele quarto? Por que aquele lado está tão escuro?

— É... N-nada... – Ruby ficou mais pálida ainda. — Está cheio de tralhas, sujo, ninguém o usa. Não se preocupe com ele, esqueça que ele existe. – ela foi falando, enquanto empurrava a castanha para dentro da sala e perto da mesa.

— Oh okay... – foi o que ela disse apenas.

Ruby sentou-se e serviu o chá para ambas, enquanto Belle cortava pedaços dos bolos. Começaram a comer e a conversar. Ruby contou um pouco sobre sua infância, sobre como raramente saía da mansão, sobre a morte trágica de sua mãe, e que após o ocorrido, sua avó que tomara conta dela. Desde então, ficara reclusa na casa, somente com os empregados. Apenas há alguns meses vinha saindo de lá para comprar algumas coisas no vilarejo.

— Sabe, eu sinto falta das pessoas... – ela comentou com o semblante triste.

— E por que você não vai mais à vila? Para conhecer as pessoas, conversar...

— Não sei... – ela disse incerta. — As pessoas não costumam gostar de mim...

— Como não? – Belle levantou as sobrancelhas. — Você é uma pessoa incrível! – ela estendeu o braço, colocando sua mão por cima da de Ruby, sorrindo. — Eu gosto de você. – disse sincera.

— Obrigada... – ela corou, sentindo sua face se encher de lágrimas. Nunca ninguém havia dito tal coisa para ela, a não ser sua avó. — Eu... Eu gosto de você também...

Naquele momento, dividiam confiança, felicidade, amizade e algo especial, mas que nenhuma das moças sabia ainda. Esse tipo de sentimento infiltra nas pessoas sem que elas se deem conta, e quando menos se espera, ele aparece, mostrando o quão enraizado está. Elas continuaram conversando por mais algumas horas, e quando já estava anoitecendo, Ruby comentou que a castanha deveria ir, para não voltar sozinha tarde da noite, poderia ser perigoso.

— Tem certeza? Eu não quero te deixar sozinha... – Belle disse, levantando-se da cadeira.

— Claro, eu vou ficar bem. – Ruby levantou-se também.

— Eu... Ouvi uns sons estranhos noite passada, uivos... Tenho medo de algo acontecer a você... – ela disse preocupada. Ruby pareceu ficar ainda mais pálida, engoliu em seco, dizendo:

— Ah, aquilo... Ahn... Não foi nada. Eu estou segura, de verdade. Esses... Lobos... Eles circulam por toda a vila, mas nunca chegam aqui. Os empregados estarão por aqui, caso... Caso eu precise! – então, aproximando-se rapidamente de sua visitante, ela continuou: — Melhor você ir, agora eu é que estou preocupada!

— Vai ficar tudo bem, vou chegar bem em casa. – Belle agradeceu a preocupação.

A anfitriã deu-lhe um abraço apertado de adeus, e um beijo no rosto, e levou Belle até a porta, pedindo para que ela andasse com cuidado. Quando a porta foi fechada, Belle deu alguns passos, e então correu se esconder pelo jardim, atrás de alguns arbustos. Ficou um tempo ali, e depois deu a volta na casa. Sabia que Ruby estava escondendo alguma coisa, e temia que a amiga estivesse em perigo, por isso, resolveu descobrir o que era. Entrou pela porta dos fundos, e observou a casa por dentro, tudo parecia quieto. Subiu as escadas pé ante pé, e entrou no quarto escuro na parte de cima.

Era um quarto grande, e demorou um pouco para que seus olhos se acostumassem à escuridão. Ficou horrorizada com tanta sujeira, tanta coisa quebrada lá dentro. Realmente, ninguém ia lá. Por isso mesmo, pareceu-lhe o lugar perfeito para se esconder e esperar o anoitecer. Foi então que viu, na parte de trás do quarto, uma espécie de cela. Era um espaço até que grande, que pegava quase de um lado ao outro do quarto, com grades, e uma porta com o cadeado.

Não sabia exatamente para o que aquilo servia, mas resolveu não se preocupar com o fato. Do lado esquerdo havia um colchão no chão, e um armário antigo de madeira. Entrou lá, para se esconder, e acabou adormecendo. De repente, um grito estridente a fez acordar, pulando de susto. Olhou para os lados, tentando se lembrar da onde estava. Quando pensou em sair do seu esconderijo, a porta foi aberta com um estrondo, e por um buraco que havia na porta do armário, ela viu Ruby lá dentro, agitada. A moça da capa vermelha fechou a porta de ferro, colocando uma enorme tranca com cadeado nela. Ruby tentou dar alguns passos para o fundo do quarto, mas parou repentinamente, gritando de dor. Belle tapou a boca com as mãos, horrorizada, respirando com dificuldade, com medo do que viria a seguir.

A moça parou no meio do quarto, jogando a cabeça para trás, gritando, enquanto seu corpo ia sendo transformado. Os pelos começaram a crescer, e agora com o faro aguçado, Ruby virou-se de frente para o armário, sentindo o cheiro da moça ali. Rosnou, fazendo com que Belle gritasse de terror. Ruby tentou avançar, mas gritou de dor, lembrando que seu corpo ainda se transformava, impedindo-a de fazer o que quer que seja. Belle empurrou a porta do armário e saiu correndo, indo para o único lugar onde parecia ser seguro: a cela. Entrou naquele espaço, fechando a porta com um estrondo, trancando o cadeado. Andando para trás, até encostar as costas na parede gelada de concreto, Belle assistiu horrorizada a transformação de Ruby em um grande lobo castanho avermelhado.

A fera virou-se para ela, encarando-a, rosnando, mostrando os dentes afiados e amarelados; veio correndo de encontro à cela, se jogando contra as grades, rosnando, enfiando as enormes patas entre as grades, tentando alcançar a castanha. Belle gritava, com o coração quase saindo pela boca, morrendo de medo, querendo que a besta fosse embora. Depois de um tempo, a loba parou de atacar e andou pelo quarto, de um lado para o outro, impaciente; parou no meio do quarto e uivou. De repente, começou a correr e se jogou contra as grades novamente, com estrondo, fazendo Belle gritar, enquanto tentava se agarrar a parede atrás de si.

Novamente sem sucesso, a loba voltou a andar em círculos pelo quarto, de olho em Belle, até parar, sentar-se no meio do quarto, uivar novamente, e então se deitar. Com a cabeça levantada e as orelhas em pé, ela encarava a castanha do outro lado do quarto. Belle, por sua vez, não tirava os olhos do bicho. Um pouco menos aterrorizada, podia prestar melhor atenção no impressionante animal. Mas ainda assim, estava preocupada e receosa. Ficaram por um bom tempo assim, se encarando, até que a loba descesse a cabeça, apoiando-a nas patas dianteiras cruzadas, finalmente deixando Belle mais relaxada. A moça estava exausta, seu corpo foi escorregando pela parede de concreto até sentar-se no chão, e ali ela adormeceu.

Demorou um pouco para conseguir abrir os olhos, e quando o fez, sentou-se assustada. A porta da cela estava aberta, assim como a porta do quarto, e não havia ninguém ali. Levantou-se, receosa, olhando em volta o quarto, saindo de lá de dentro. Andou pelo corredor, e estava pronta para descer as escadas, quando ouviu um choro baixo vindo de um cômodo no fim do corredor. Aproximou-se, devagar, até a porta do quarto, e viu Ruby ajoelhada no chão, apoiada na cama, chorando desconsolada. Sentiu pena da moça, queria ajudá-la, se apenas pudesse...

— Ruby... – a morena virou-se rapidamente, assustada, e começou a gritar:

— Vai embora!

— O que? Ruby, eu... – mas ela não conseguiu falar nada, pois a moça se levantara, dando alguns passos para trás, enquanto não parava de falar.

— Você é louca? Eu podia ter te matado! Meu Deus! – ela olhou para cima, e depois voltou a olhar para a castanha. — Aqui não é seguro para você, vai embora! É o que deveria ter feito ontem à noite!

— Calma, não aconteceu nada, eu estou bem... – Belle dizia, tentando se aproximar, vagarosamente. — Eu queria ter certeza que ficaria bem, então me escondi... Eu... Eu não sabia que...

— Ninguém sabe... – Ruby disse baixinho, baixando o olhar. — É uma maldição de família. Por isso eu vivo trancada aqui. Por isso acham que essa mansão é amaldiçoada, e por isso eu não posso permitir que você fique aqui, é perigoso! – Ela disse, andando desnorteada. — EU SOU UM MONSTRO!! – Gritou com lágrimas nos olhos.

— Você não é um monstro... – Belle disse mansamente, sentindo um nó na garganta. — Você é minha amiga...

— Não, Belle, você não entende... Se... Se eu tivesse te machucado... Deus! – ela não conseguia acabar a frase sem cair no choro. — Eu não poderia me perdoar! Você é a única pessoa que eu já me importei de verdade...

— Eu também me importo com você, e por isso eu tenho que ficar e te ajudar.

— É perigoso demais!

— Pode ser, mas eu vou ficar, confio que nada vai me acontecer.

Ruby caiu no choro, e Belle correu para abraçá-la. Então, com toda a força que restava dentro de si, a morena afastou sua amiga, com mágoa no coração, mas pediu para que ela fosse embora e nunca mais voltasse. Belle abaixou a cabeça e saiu da mansão. O resto do dia, Ruby ficou paranoica, com uma sensação de medo que não a deixava. Sentia falta de Belle, mas ao mesmo tempo tinha medo de que pudesse machucá-la. Aquilo não daria certo, nunca daria. Como poderia? Estava fadada a viver sozinha. Ela sabia que os lobos tinham um único parceiro para a vida toda, mas talvez ela fosse a exceção, talvez ela não tivesse ninguém... Talvez fosse melhor assim.

Quando a noite caiu, Belle esgueirou-se pela lateral da casa, até entrar pela porta dos fundos. Estava certa que iria ajudar de alguma forma, mesmo com medo. Juntou toda a coragem que tinha dentro dela e subiu as escadas, indo para o segundo patamar da casa, e para dentro daquele quarto. Entrou dentro da cela, novamente trancando-se lá. Talvez fosse mesmo louca, ninguém em sã consciência faria aquilo, se colocaria em perigo tão grande, mas para ela, ficar longe de Ruby, deixando-a se odiar daquele jeito, era pior do que enfrentar o lobo. E então, ela esperou. Quando percebeu, Ruby entrou correndo dentro do quarto, colocando a pesada tranca, quase se transformando. Ao perceber Belle na cela, quase morreu de susto, e desesperada, começou a dizer que ela era louca, e deveria ir embora.

A castanha, assustada, mas firme em sua decisão, permaneceu encostada à parede, até que a transformação fosse completada. A loba começou a farejar o cheiro de Belle, e rosnando, aproximou-se da cela, cautelosamente. Subiu na grade, colocando as grandes patas nela, reconhecendo o cheiro de Belle. Rosnou uma vez mais, e então desceu. Andou de um lado para o outro no quarto, mais calma, e então se sentou no meio do quarto. Uivou, e ficou encarando Belle. A moça sorriu dentro da cela, mais calma do que na noite anterior, aproximando-se um pouco, dando alguns passos, e então, com os olhos grudados nos da loba, sentou-se no meio da cela.

A semana inteira de lua cheia se passou assim, com Belle dentro da cela, e Ruby transformando-se em lobo dentro do quarto. Reconhecendo-se, conhecendo-se, ajudando-se, adaptando-se, durante todo o processo. No mês seguinte, a castanha pegava o mesmo caminho até a mansão, dessa vez confiante, contente até com o progresso que faria naquela noite. Entrou, cumprimentando Ruby, e passaram o dia conversando, tomando chá e comendo bolo. Isso virara rotina em suas vidas, tal a confiança que depositavam uma na outra, tal o carinho que tinham uma pela outra.

Naquela noite, durante o ritual, Ruby transformou-se no grande lobo castanho avermelhado, enquanto Belle permanecia dentro da cela. A loba aproximou-se da grade, sentindo o cheiro da castanha, então andou pelo quarto, e finalmente deitou-se no meio do cômodo. Belle, confiante, deu alguns passos, mas não parou no meio da cela; continuou, até alcançar a porta. A loba imediatamente levantou a cabeça, atenta, com as orelhas em pé. Belle estendeu a mão, pegando a chave que ficava em uma caixinha no chão, logo ao lado da cela e aproximou-se da porta. A loba estava inquieta, mas continuava no mesmo lugar. Então, a castanha abriu a porta, vagarosamente, com os olhos grudados nos do animal. Aproximou-se, andando devagar, estendendo a mão, maravilhada em poder ver tão de perto aquele lobo.

De frente para a fera, ajoelhou-se, estendendo a mão, quase a tocando, ansiando por isso. Então, a loba abaixou a cabeça, aproximando-a, deixando com que a mão da castanha finalmente tocasse o pelo macio entre suas orelhas. O sorriso que nasceu nos lábios de Belle foi instantâneo, seus olhos brilhavam, ela estava fascinada. Engatinhou até a lateral do animal, segurando-se em suas costas, sentindo a extensão do seu dorso, os pelos, e então o abraçou. A loba deitou a cabeça em cima das patas, confortável com o afago de Belle, sabendo quem ela era, reconhecendo-a. Adormeceram assim, com Belle seguramente abraçada à loba, até o amanhecer.

Quando acordou, sentou-se no chão frio, vendo Ruby ao seu lado, com os olhos arregalados. A moça ia dizer-lhe alguma coisa, quando Belle sorriu, abraçando-a, não a deixando dizer nada. Seus olhos se encontraram com os da moça da capa vermelha, e ela disse:

— Eu sabia. Você não é um monstro. – Ruby tentou rebater, mas Belle olhou-a com censura, e continuou. — Você é apenas uma grande e bela loba. A minha loba. – Ela fechou os olhos, aproximando-se de Ruby, selando seus lábios em um beijo apaixonado.

A partir daquele dia, as moças saíam mais da mansão do que apenas na sexta-feira, para passearem pela vila. Os gritos não se eram mais ouvidos da mansão, as pessoas já não tinham mais arrepios quando passavam por ali. Não havia mais uma fera, somente os uivos de uma loba, que finalmente havia encontrado o seu par, e não estava mais sozinha.

Um comentário

  1. Awwwwwww! *____* Que lindo ler isso, sério, é cheio de tanta delicadeza que Belle traz, e o suspense que Ruby acrescenta na história. Bom, não é segredo pra ninguém (acho que já deve ter percebido) que Bela e a Fera é de longe meu conto favorito, esse é um dos motivos (acho que o único praticamente) que comecei a escrever sobre elas, e ler agora...esta visão, a versão feminina de a Bela e a Fera...é tão perfeito! Ficou lindo lindo lindo, e eu nem tenho palavras direito para elogiar, acho que a úncia coisa que eu posso dizer é para você continuar escrevendo, sempre, sempre, porque com certeza tem talento! Ler toda a obra agora completa, nossa....tá lindo demais, sério, parabéns!

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