Conto – Outra Vida

Conto escrito ouvindo a música "Outra Vida" do cantor Armandinho.


 Era fim de tarde, e o céu estava tingido de laranja. O vento balançava as árvores, arrepiando meu braço, dando aquela leve sensação de frio, mas, ao mesmo tempo, gostoso demais para colocar um casaco. Coloquei a canga em cima da areia, bem em frente ao mar, e me sentei. Olhei para as minhas pernas, cheias de pelinhos encravados, e fiquei cutucando, puxando as bolinhas, tentando conter o nervosismo. Olhei o visor do celular umas dez vezes, e cinco minutos depois, ela apareceu.

Caminhava na beira do mar despreocupada, com os fones nos ouvidos. Dessa vez, usava um short jeans escuro por cima do biquini branco, um chinelo Havaianas, e o celular em uma das mãos. A luz do sol reluzia em seu corpo, e sua pele marrom brilhava. Quando estava perto o suficiente, ela sorriu ao me ver. Ainda que eu não pudesse ver seus olhos, por conta dos óculos escuros, eu sabia que ela estava feliz em me ver. E, pegando o mesmo caminho que ela fazia todos os dias, ela veio até mim.

­­— Cuida para mim?

“Claro, cuido de tudo, até de você, meu amor. É só você deixar.” Obviamente foi o que pensei, porque o que eu disse foi:

­— Claro!

Esse era o nosso diálogo de sempre, com pequenas variações.

Ela se agachou ao meu lado, eu estendi minhas mãos, e ela colocou ali os fones e o celular. Aqueles eram os quinze segundos mais perfeitos do dia: observar aquele sorriso tão lindo e tão perto do meu rosto. Se ela se desiquilibrasse, o beijo era certeiro. Mas ela nunca se desiquilibrava. Então, levantou-se, deixando o short deslizar pelas suas pernas. Engoli em seco. Se ela soubesse o quanto eu queria ser aquele short só para abraçar suas pernas e sentir a maciez do seu corpo... Depois foi a vez dos óculos, e eu vi seus olhos escuros rapidamente.

Olhei para cima, observando-a passar os dedos pelos cabelos crespos, ajeitando-os para o lado. Eu já tinha percebido que ela fazia um corte diferente, sempre preferindo estilizar o cabelo para o lado direito, formando uma nuvenzinha na cabeça. Meu olhar desceu pelo seu corpo, e eu me arrepiei. Ela tinha uma beleza comum, mas, para mim, era a mulher mais linda do mundo. Os seios eram pequenos, dava para ver algumas dobrinhas em suas costas e a barriga ficava um pouco em cima do biquíni. Já tinha visto algumas estrias naquela região, e eu só conseguia pensar em segui-las com meus dedos.

Eu queria pegar aquela mulher. Pegar, de verdade. Encher minhas mãos em sua pele, sentir todas as voltas e recantos do seu corpo, deslizar meus dedos, apertar e morder. Meu deus, que vontade de morder aquela mulher! Aqueles ombros…

— Isa? Tá tudo bem?

Ai, caralho. Ela me olhava diretamente nos olhos e senti minhas bochechas queimarem. Eu só queria sumir.

— Tá-tá tudo bem. Eu tava… pensando na minha cachorra.

— Na Titi? – ela me olhou incrédula, com as sobrancelhas levantadas. Parabéns, Isabela, agora ela te acha uma completa idiota.

— É que ela ama nadar no mar quando não está tão quente, como hoje.

— Realmente, o dia está uma delícia hoje. Quando quiser trazê-la, retribuo o favor e fico tomando conta das suas coisas. – Ela piscou para mim, passou os dedos mais algumas vezes no topo da cabeça, e se afastou.

Fiquei assistindo enquanto ela entrava no mar. Não consegui evitar o sorriso que apareceu no meu rosto. Ela tinha falado comigo! E ela sabia o nome da minha cachorra! Ou seja, ela realmente estava me ouvindo quando eu falava sem parar sobre tudo o que a Titi, minha vira-lata caramelo, aprontava. Voltei os olhos para o horizonte a tempo de ver seu corpo emergindo do mar, com a cabeça para trás.

Suspirei, sentindo uma tristeza momentânea. Será que algum dia ela olharia para mim de forma diferente? Será que percebia como eu suspirava quando ela passava, ou como minhas mãos tremiam toda vez que esbarrava na dela? Ou como eu gaguejava quando era pega observando seu corpo? Será que ela via meus olhares de desejo? Ou, para ela, não passava de admiração pelo fato de eu ter quinze anos a menos?

A cada vez que nos encontrávamos por acaso naquela praia eu descobria um pouco mais sobre ela. Na primeira vez, descobri seu nome: Soraia. Na segunda, descobri que tinha duas filhas e um gato chamado Feroz. E nas vezes seguintes, descobri que sua cor favorita era amarelo, que ela teve um cavalo quando era adolescente e que seu ex-namorado tinha traído ela mais de três vezes.

Eu me perguntava como ele tinha sido capaz de trair uma mulher daquela. Engraçada, bonita, divertida, inteligente e tão... maravilhosa. Mas, novamente, não comentei nada. Apenas um “é complicado” aqui e ali. Porque, se fosse para ser sincera, minha vontade era dizer que a risada dela de porquinho era extremamente fofa e eu podia fazer palhaçada o dia inteiro só para vê-la rir.

Já estava anoitecendo e eu comecei a tremer um pouco de frio, mas me recusei a sair do lugar, nem que todos os pelinhos possíveis do meu corpo ficassem arrepiados. Depois de mais alguns minutos, observei-a sair da água e andar em minha direção. Quando estava perto o suficiente, arregalou os olhos, surpresa:

— Menina, não trouxe agasalho?

— N-não. Eu… Eu não achei que-que estaria tão-tão fr-frio. – Nossa Senhora eu devia estar tremendo por mim e por ela, não entrava na minha cabeça como ela parecia imune ao frio.

— Levanta.

Eu prontamente obedeci. Ela tirou a canga que eu tinha trazido, bateu um pouco no ar, para tirar o excesso de areia, e colocou nas minhas costas, envolvendo meu corpo. Sentou-se do meu lado e, quando foi pegar suas coisas que eu ainda estava segurando, sua mão encostou na minha, e ela a apertou por alguns segundos, soltando-a em seguida.

— Quer ficar doente? Quem vai cuidar da Titi? – ela revirou os olhos e eu comecei a rir.

— Ué, você.

— Como assim, eu? Só vou cuidar se tiver uma recompensa aí.

— Eu deixo você ficar com ela aos finais de semana.

— Guarda compartilhada, é? Aceito. – Ela estendeu a mão, e eu prontamente apertei. — Agora vamos pra casa?

— Pra sua ou pra minha?

Foi tão automático que eu só percebi o que eu disse quando ela me olhou surpresa. Os segundos seguintes de silêncio pareceram horas. Sua boca se franziu, de um lado para o outro, enquanto ela claramente ponderava e pensava no que eu acabara de dizer. Senti falta de ar, meu estômago revirava e eu só queria morrer. Por que, Deus?

— Engraçadinha você, né? – ela sorriu por fim. Levantou-se, batendo as mãos nas pernas, tirando o excesso de areia.

— Ué, perguntei por que vai que você quer ver a Titi… – Levantei-me, também tirando o excesso de areia do corpo, e continuei com a canga enrolada nos ombros. — Mas, já que não quer, vou sozinha mesmo. – Dei de ombros.

Ela ficou em silêncio e colocou os shorts novamente. Começamos a andar pela praia. Geralmente, quando eu ficava até ela ir embora, voltávamos juntas. Pelo menos por uns cinco quarteirões. Depois, eu virava na esquina da sorveteria e pegava um ônibus, enquanto ela seguia reto por toda a vida até o prédio em que morava. Olhei para o céu escuro, com algumas nuvens. A presença dela era reconfortante, e eu já me sentia nostálgica. Sentia-me assim toda vez que tínhamos que ir embora.

Era como se eu não quisesse que ela partisse. Eu queria poder ir continuar com ela toda vida até o apartamento dela. Queria segurar o gato no colo, dançar com as filhas dela qualquer música que elas quisessem e me aconchegar no sofá. Queria tanto poder me deitar na cama dela e descobrir qual era o cheiro do travesseiro dela. Se eu pudesse só ficar agarradinha naqueles braços, com o nariz enterrado no pescoço dela, e poder acordar na manhã seguinte com o cheiro do café…

— Isa? – ela estava parada na esquina, com as mãos na cintura, olhando-me preocupada.

— Hã?

— Chegamos.

— É, chegamos.

Ela me abraçou, e eu podia morar naquele abraço. Segurei-a com força, mais do que o necessário, sentindo o cheiro de mar e protetor solar que exalava da sua pele. Por um segundo, senti uma dorzinha no peito, com o pensamento de que a gente nunca seria realidade. Era só uma vontade minha de que, pelo menos uma vez na vida, desse certo. Senti seus dedos acariciando meu cabelo, e ela parecia não ter pressa de me soltar, o que me consolava. Fechei os olhos, sentindo que aquele momento especial e único chegava ao fim. Mas antes de nos soltarmos, ela falou no meu ouvido:

— Talvez, um dia.

Ela me apertou e finalmente soltou meu corpo, já dando dois passos para trás, pronta para seguir seu caminho.

­— Um dia? O quê? – Perguntei sem entender.

— Na sua casa ou na minha.

 

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