Conto - O Preço da Felicidade



Olhou-se no espelho, e o que viu foi o reflexo do cansaço estampado em seu rosto magro. Depois de um dia como aquele, só queria chegar a casa e trancar-se em seu quarto, seu porto-seguro. Olheiras sob os olhos negros, nariz fino, boca rasgada em um sorriso forçado. Tentou reconhecer o próprio reflexo, mas não conseguiu. Apesar dos seus meros vinte anos, já sentia na pele a vida difícil de um quarentão. Sentiu-se sufocado repentinamente. Precisava de ar. Também, após tantas horas debaixo daquele sol dos infernos... Quem aguenta? Desatou o nó da gravata, jogando-a em cima da cama. Primeira camada. Sentiu um alívio na região da garganta. Os olhos ainda miravam o espelho. Fez uma careta, lembrando-se de quando era apenas um menino como qualquer outro. O que o fizera mudar? Por que se tornara tão amargo? Em que ponto da vida largara o pião, a pipa e a bola, para agarrar-se em uma maleta preta, um terno sufocante e um emprego de merda que mal pagava o pão de cada dia?

Uma lágrima escorreu no canto dos olhos, e um sorriso abriu-se em seus lábios secos. Se seu pai lhe visse daquela maneira, teria gritado em suas orelhas. Meninos não choram! Ele podia claramente ver em seu rosto as marcas já apagadas pelo tempo, um olho roxo, um vergão na bochecha, lábios cortados, orgulho ferido. Passara metade da sua infância como um cão sarnento, se escondendo dos safanões que o pai lhe dava todas as noites. A humilhação de calar-se e apanhar sem saber por quê. Será que não sabia? Será que no fundo da alma, não sabia a razão de tanto sangue derramado? A risada frustrada saiu de seus lábios, enquanto tirava o peso do paletó dos ombros. Segunda camada. Logo se desfez da blusa, mirando o peito nu e magro no espelho. Terceira camada.

Sentou-se na cama. Os sapatos indo ao chão, junto com as meias. Podia respirar melhor, o corpo se acostumando com a temperatura amena do quarto. A quarta camada já retirada, indo para a quinta. Calças escorregando pelas pernas magricelas e brancas. Covarde! Fracote! Não passa de um fraco! Filho meu não é um franguinho covarde! As lembranças invadiam-lhe a mente em turbilhão. O sorriso triste no canto dos lábios. A sexta e última camada descendo pelos joelhos, até escorregar e ficar esquecida no chão frio do quarto. E assim, completamente nu, como veio ao mundo, olhou-se no espelho. E o que viu? Não soube definir. O desespero arranhando-lhe a garganta, a angústia fazendo o estômago embrulhar, a culpa corroendo-lhe as entranhas. Quem era? Ou a melhor pergunta seria: O quê era? Aberração. Fechou os olhos, engolindo em seco. O sussurro do seu pai se repetindo de novo e de novo em sua mente perturbada. Quantas vezes se olhava no espelho, e não se reconhecia? Mesmo agora, despido de qualquer máscara e pano que o cobrissem, ainda não podia responder a essa pergunta.

            Enxugou os olhos, andou até o armário do quarto, abrindo-o e sentindo um frescor arrepiar-lhe o corpo. Olhou para cima, como se pedindo perdão, e não tardou mais o que tinha que fazer. As mãos ágeis agarraram o vestido vermelho escondido em uma gaveta, o sutiã de enchimento, a peruca loira. De uma caixa no compartimento debaixo, tirou o salto da mesma cor. Sentou-se na cama, e a primeira coisa a se colocar era a meia-calça. Virando a cabeça para o lado esquerdo, pode vislumbrar o espelho, admirado pelas suas lindas pernas. Colocou o sutiã com enchimento, vislumbrando o que criara com o pouco que tinha. Lembrou-se da primeira vez que os experimentara. Sensação estranha de reconhecimento. Primeira camada.

            O vestido caindo pelo corpo como uma luva. A excitação claramente estampado em seu sorriso. Riu pela primeira vez no dia. Olhando para o espelho como se fosse uma tela de cinema, vislumbrou o dia em que sua mãe lhe pegara usando seu vestido favorito. Meninos não usam vestidos. Ralhou ela. Mas eu gosto tanto dessa roupa, mamãe! Você fica linda nela. Eu também quero ficar lindo. Fora a resposta que dera no auge dos seus apenas sete anos. A mãe riu, e não achando nada demais, deixou que desfilasse para ela com o vestido. Ele jogou beijos, e ela viu o brilho estampado nos olhos grandes e atentos do filho querido. Brilho que agora ele próprio podia enxergar. Segunda camada.

            Prendeu o cabelo para trás, ajeitando-o com gel, e se sentou à mesa ao lado da cama, no canto esquerdo do quarto. Abriu as gavetas, retirando os apetrechos que precisaria. Primeiro, limpou a pele, então começou com o corretivo, para tirar as imperfeições da pele. Um pouco de base para deixar uniforme, e o pó da cor da sua pele, dicas que foram dadas pela moça da loja de cosméticos, que muito solícita e simpática, interessou-se pela sua história e desde então virara melhor amiga. Agora encarava o espelho menor à sua frente, enquanto passava sombra dourada do lado de dentro dos olhos até o meio, e vermelho de fora para dentro, até o meio. O preto do lápis veio realçar seus olhos, e o rímel ajeitou os cílios pequenos. O blush em um tom mais escuro, aplicado nas regiões certas, deixava-lhe o rosto mais fino e feminino. O batom escuro foi o toque final. Terceira camada.

            Prendeu a peruca com cuidado, para não embaraçar os fios. Você é uma vergonha. O nó na garganta quase o fez chorar e borrar a maquiagem tão bem feita. Engoliu o choro e escovou os fios loiros. Assim, a quarta camada já estava quase feita. Olhou para o espelho uma vez mais, e o que viu foi uma imagem de si mesmo alguns anos atrás, quando tivera coragem o suficiente para sair, vestido assim, de casa. A primeira surra a gente nunca esquece. Precisou de dias, semanas, meses, para que conseguisse sair de novo, como alguém normal. A dor, a humilhação dos hematomas pelo corpo lhe doía na alma. Então, como graça salvadora, ou um passe para o inferno, a primeira pílula desceu rasgando sua garganta por dentro. Vivo ou morto, já não fazia diferença para ele.

            Sentou-se na cama novamente, colocando a sandália de salto-alto, espalhafatosa. Quinta camada. Levantou-se, olhando para a nova imagem no espelho. E sorriu, com uma ponta de orgulho, sabendo que tinha feito um bom trabalho, como lhe ensinaram. Jamais se esqueceria das pessoas que o ajudaram a sair do buraco. Homens que assim como ele, compartilhavam um segredo. Homens que não se prostituíam para conseguir dinheiro, mas sim faziam shows. As famosas Drag Queens. Eu não tenho mais filho. Para mim, você morreu. Convulsionou em soluços, sem conseguir impedir que algumas lágrimas descessem pelas bochechas agora vermelhas. As lágrimas atingiram seus lábios escarlates, e ele sorriu. Aprendera a fazer isso, sorrir quando mais se queria chorar. Aprendeu a esconder no riso, nos trejeitos exagerados, na caricatura, a dor de ser rejeitado. A humilhação que sofrera da própria família, os desejos de dormir para nunca mais acordar.

            Endireitou-se, mirando-se novamente no espelho. E o que viu, foi alguém totalmente diferente. Coberto pelas novas camadas, não podia ver quem realmente era, e aquilo fazia bem. Novas maneiras de se transformar em qualquer outra pessoa que não ele, para não ter que enfrentar a dor e a angústia de, no fundo, não se reconhecer. Coragem de ser, ou covardia por se esconder? As pessoas faziam isso o tempo inteiro. Escondiam-se de seus verdadeiros reflexos, com medo do que poderiam encontrar. Sexta camada... Preferia ver você morto, preferia morrer, a ver meu filho transformado... Nisso. Últimas palavras que ouvira da boca do pai.

Encarou-se uma última vez no espelho. Com o orgulho preso na garganta, limpou as lágrimas que caíram. Aquilo era apenas um espelho, um objeto inanimado. Todos nós temos escolhas na vida, e por mais difíceis que elas sejam, são escolhas. Toda escolha tem um preço, por muitas vezes alto. E por mais que ele tivesse pago esse alto preço, tendo chegado aonde chegara, ele jamais voltaria no tempo e faria diferente. Ele escolheu ser feliz. 

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